POR GIULIANA CAPELLO
SE OS ESPAÇOS CONSTRUÍDOS QUE FREQUENTAMOS EXERCEM INFLUÊNCIA SOBRE NOSSAS EMOÇÕES, POR QUE NÃO PROJETAR EDIFÍCIOS E AMBIENTES CAPAZES DE ESTIMULAR FELICIDADE, CRIATIVIDADE, CURA, FOCO E BEM-ESTAR? A NEUROARQUITETURA ESTÁ AÍ PARA NOS AJUDAR NISSO
Nos anos 1950, uma autoanálise simples levou o virologista e epidemiologista norte-americano Jonas Salk a notar que algo especial acontecia quando ele visitava a Basílica de São Francisco de Assis, na Itália, onde morava. Como relatou, suas incursões àquela igreja mexiam com suas emoções, tornando-o mais criativo e inspirado. Uma década depois, ainda instigado por essa percepção, o médico convidou o arquiteto Louis Kahn para projetar a sede do Instituto Salk na Califórnia, Estados Unidos. O que ele desejava? Que a arquitetura do edifício unisse funcionalidade, estética e arte de modo a inspirar os cientistas e pesquisadores da entidade a realizarem seu trabalho com a mesma paixão que orienta artistas em suas obras.
Eram os primórdios do que hoje conhecemos como neuroarquitetura, junção da neurociência, da arquitetura, da fisiologia humana e da psicologia. O termo, porém, só foi inventado em 2002, ao nomear uma disciplina instituída pelo neurobiologista Fred Gage, professor do Laboratório de Genética do Instituto Salk. No ano seguinte, o arquiteto John Paul Eberhard oficializou a expressão ao participar da fundação da Academia de Neurociência para Arquitetura (ANFA, na sigla em inglês), pelo Instituto Americano de Arquitetos. A missão da instituição é, desde o início, estudar de que maneiras o ambiente físico influencia a estrutura e o funcionamento do cérebro humano. Por extensão, investiga como os diferentes elementos arquitetônicos são capazes de gerar emoções subjetivas que levam as pessoas a se sentirem confortáveis ou oprimidas, dependendo do espaço em que estão.
METODOLOGIA TESTADA ENTRE FUNCIONÁRIOS DAS EMPRESAS
“Em um primeiro momento, a neuroarquitetura se voltou principalmente para os ambientes corporativos, com o objetivo de fomentar a produtividade e a criatividade nas empresas a partir de mudanças no design dos locais de trabalho”, conta o arquiteto especialista em neuroarquitetura Glaucus Cianciardi, professor de design de interiores do Centro Universitário Belas Artes e pesquisador de psicologia ambiental e neurociência. “Depois, ela alcançou os projetos comerciais, visando criar ferramentas para impulsionar as vendas. Mas hoje sabemos que a neuroarquitetura beneficia todos os espaços construídos”, continua.
A mesma certeza têm os profissionais do grupo Perkins&Will, que conta com mais de 40 estúdios de arquitetura em diferentes países e é referência global no assunto. Em todo o mundo, dezenas de obras com a grife do escritório são concebidas com base nessa temática, como explica Cassia Moral, project architect e líder de desenvolvimento de projetos de arquitetura da empresa: “Acreditamos que a arquitetura não deve se limitar à funcionalidade e às questões práticas. A cada projeto, refletimos sobre as sensações que serão produzidas por meio de nossa arquitetura”. Para fazer a ligação entre pessoas, sentimentos e ambiente construído, Cassia explica, os projetos incorporam soluções de design biofílico, tais como o cuidado extremo com a iluminação e a ventilação naturais, que afetam nosso biorritmo e desempenho cognitivo; o predomínio de materiais naturais relacionados à percepção de aconchego e conforto, a exemplo de madeira, bambu, cerâmica e pedra; e a presença marcante de plantas e jardins, associados ao bem-estar trazido pela reconexão com a natureza.
O projeto Bio Jardins, finalista na categoria Projeto Futuro: Escritório, no World Architecture Festival, realizado em novembro passado em Singapura, exemplifica as características relacionadas pela arquiteta do Perkins&Will. Com a obra prevista para iniciar em meados de 2025, a torre corporativa de 11 pavimentos promete alterar a inóspita paisagem da Avenida Rebouças, em São Paulo. “Para quem está do lado de fora, na cidade, o prédio se apresenta com diferentes formas na fachada, e seus brises de madeira criam jogos de luz e sombra que dão um movimento mais natural ao edifício ao longo do dia”, relata Cassia. Internamente, a permeabilidade visual liga os usuários aos jardins implantados nos terraços. “O objetivo é sempre melhorar a experiência, o bem-estar, as trocas entre os colaboradores e a impressão de estar em casa mesmo no ambiente de trabalho.”
Para Lorí Crízel, presidente da ANFA Brasil e professor de neuroarquitetura do instituto Politecnico di Milano, na Itália, atualmente já podemos observar mudanças importantes nesse setor. “Tempos atrás, empresas como o Google criavam áreas de descompressão em seus escritórios, mas o próprio termo carregava a ideia de um local de trabalho que estressa as pessoas. Então, hoje eles preferem falar em healing spaces, ou seja, ambientes projetados para serem mais amigáveis e saudáveis”, explica.
OS BENEFÍCIOS PODEM SER PARA TODOS
Outro segmento que ganha muito com a neuroarquitetura engloba hospitais, centros de saúde e locais como escolas e residências para pessoas neurodivergentes. “É o que chamamos de design salutogênico: quando o ambiente é desenhado para auxiliar na cura dos pacientes e no bem-estar de quem ali trabalha. Isso se transformou em modelo de negócio nas grandes redes hospitalares”, acrescenta Crízel. O mesmo vale para as escolas inclusivas, em que o espaço passa a ser um elemento pedagógico relevante, planejado para acolher de maneira mais adequada e humanizada crianças e jovens com transtorno do espectro autista e TDAH (transtorno do déficit de atenção com hiperatividade), por exemplo. Ou, ainda, para as residências delineadas seguindo os princípios do gerodesign, com foco nos públicos 60+ ou 80+, algo que tende a se propagar em todo o mundo, acompanhando o crescimento da expectativa de vida.
Cabe destacar que existem diferenças na abordagem da neuroarquitetura para espaços voltados à coletividade e para casas e apartamentos unifamiliares. Glaucus Cianciardi explica: “Em ambientes de uso coletivo, pensamos em soluções por amostragem, que vão afetar os usuários de uma maneira mais geral, como a melhoria da iluminação natural, a inserção de vegetação e os artifícios que favorecem a redução de ruídos. Mas quando se trata de uma residência, podemos personalizar o projeto observando aspectos importantes para cada cada um dos moradores”. Assim, uma pessoa que teve um trauma relacionado a água, por exemplo, talvez não queira paredes azuis no quarto ou referências ao mar salpicando a sala. Do mesmo modo, uma criança autista pode usufruir de uma área de brincar mais segura e confortável para suas necessidades.
Há mais de 15 anos, o arquiteto e designer Guto Requena trabalha a relação entre tecnologia e neuroarquitetura. Sempre atento às sensações geradas pela arquitetura, ele criou para si um apartamento, em São Paulo, que é uma aula sobre como projetar com foco no bem-estar físico e mental, se valendo de recursos de design biofílico e inovações high tech. O arquiteto também utiliza o conceito de ciclo circadiano – que corresponde ao ritmo natural do nosso organismo, regulado pelos diferentes estímulos recebidos pelo cérebro durante o dia e a noite – para desenvolver a iluminação em todas as propostas corporativas e comerciais que assina.
Com os olhos na mesma direção, Requena desenvolveu o experimento multidisciplinar Love Project, por meio do qual indivíduos conectados a sensores de atividade cerebral, batimento cardíaco e voz narram sua mais incrível história de amor. Os dados e emoções gerados são mapeados e passam por softwares que os reinterpretam a fim de produzir em impressoras 3D objetos funcionais repletos de sustentabilidade afetiva. “Uma das minhas grandes investigações é tentar provar que, unindo o design e a tecnologia, seria possível conceber estratégias para estimular afetividades e empatia entre as pessoas”, conta.
Outro arquiteto que aplica conceitos de neuroarquitetura em seus trabalhos há alguns anos é Junior Piacesi, de Belo Horizonte. Ele, que foi aluno da arquiteta Priscilla Bencke, cofundadora da Neuroarq Academy (Academia Brasileira de Neurociência e Arquitetura), percebeu que os clientes começaram a pedir espaços que toquem mais suas emoções, dialoguem com suas histórias e promovam bem-estar. “Para isso, observo sempre a luz que vou inserir nos ambientes, as cores, as texturas, a acústica, os cheiros, a vegetação, a ergonomia do mobiliário e a circulação, que deve ser mais ampla, confortável”, relata. Ele conta que já viveu a situação de um cliente corporativo solicitar a reformulação de um layout que era para 100 funcionários a fim de acomodar 300. “Hoje eu questiono essa ideia equivocada de alta performance propondo algo mais elegante, que considere o ser humano. Afinal, como alguém pode trabalhar bem em um ambiente apertado, que perde em acústica e parece uma caixa neutra e fria?”, reflete, sugerindo que a neuroarquitetura ainda tem muito a crescer por aqui.



















