SERÁ QUE BASTA dar um banho de tecnologia em uma cidade para torná-la inteligente? Se algum dia já acreditamos nisso, hoje sabemos que a tecnologia só potencializa o modelo existente. Ou seja, nesse momento de aceleração da transformação digital dos centros urbanos, os ganhos serão tanto maiores quanto maior for o foco do município na qualidade de vida de seus cidadãos.
Eleita a cidade mais inteligente do mundo em 2023 pelo World Smart City Awards, a principal premiação desse universo, Curitiba é exemplo claro dessa lógica.
A capital paranaense não se tornou referência mundial simplesmente por investir em soluções digitais, nem conseguiu esse feito da noite para o dia. “Curitiba
saiu na frente porque lá atrás teve um planejamento urbano muito inteligente, proposto por Jaime Lerner e realizado ao longo de algumas gestões”, afirma o designer estratégico Fabiano Virginio Pereira, diretor do CR+IED, o Centro de Design e Inovação do IED Brasil (Istituto Europeo di Design).
Não há dúvida de que incorporar pacotes de tecnologia à infraestrutura de cidades já existentes é o caminho sem volta que estamos percorrendo. “O ponto é: quanto cada área urbana está estruturada para o que está chegando? Em cada local, o impacto será diferente”, analisa Fabiano, lembrando que não dá tempo de parar tudo, planejar e só então acolher a tecnologia. “As regiões mais amigáveis aos cidadãos podem dar grandes saltos, enquanto as que não têm um planejamento urbanístico voltado à qualidade de vida da população talvez enfrentem problemas como a segregação digital.”
Além de apresentar ótimos indicadores de governança, educação, mobilidade, segurança, saúde e qualidade de vida, entre outros, Curitiba também é a capital menos desigual do Brasil, de acordo com o Mapeamento da Desigualdade, realizado no início deste ano pelo Instituto Cidades Sustentáveis. Entre as iniciativas inovadoras que a caracterizam como uma cidade inteligente, estão ônibus elétricos, usinas fotovoltaicas, fazendas urbanas, escolas públicas de robótica, câmeras de segurança com reconhecimento facial e uma série de portais e aplicativos de atendimento ao cidadão apoiados por inteligência artificial. Para o professor do IED, o curitibano passou a se orgulhar de viver em uma cidade modelo e, com isso, criou a expectativa de estar sempre na vanguarda da inovação. “Isso vai gerando um processo, entre aspas, de renovação sistêmica”.
Mas o que é uma cidade inteligente?
No princípio, a ideia se limitava a uma abordagem tecnocentrista, como se tudo girasse em torno da tecnologia. A expressão se popularizou em meados
dos anos 2000, quando passou a ser utilizada por big techs como IBM, Cisco e Microso, que começaram a enxergar as cidades como um gigantesco mercado a ser explorado. Ser smart era basicamente sinônimo de fazer uso das tecnologias de informação e comunicação – como internet das coisas, sensores e automatizações – para aumentar a eficiência em operações públicas de iluminação e controle de tráfego, por exemplo.
Com o tempo, o conceito evoluiu e ganhou desdobramentos. Passou a fomentar discussões globais sobre o futuro dos centros urbanos, revelando-se proveitoso para ampliar a visibilidade de iniciativas que ultrapassam os interesses comerciais.
Na atual acepção da ONU, as smart cities são aquelas que usam tecnologia e inovação para melhorar o ambiente urbano – desde que isso leve a uma maior qualidade de vida, prosperidade e sustentabilidade, além de cidadãos engajados e empoderados. Notou como Curitiba parece satisfazer à risca a definição?
O foco na condicional sobre qualidade de vida e o que vem atrelado a ela tem peso enorme. Afinal, avanços tecnológicos também podem gerar impactos negativos. Por isso a Carta Brasileira para Cidades Inteligentes, de 2020, lembra que é fundamental considerar as oportunidades, mas também os riscos oferecidos pela transformação digital. Elaborado por cerca de 130 instituições públicas e privadas,
o documento expressa as estratégias do Governo Federal para o desenvolvimento urbano sustentável no Brasil. Conforme
o texto, as smart cities que desejamos ver florescer são comprometidas em reduzir desigualdades, promover o letramento digital e garantir o uso seguro e responsável dos dados coletados. Além disso, são inclusivas, diversas, justas, vivas e acolhedoras – “colocam as pessoas no centro e proporcionam a melhoria da qualidade de vida a todas e a todos”.
Adeus às tecnoutopias
A definição compartilhada pela ONU e pela Carta Brasileira para Cidades Inteligentes tem um viés humanizado ausente no conceito de smart city vinculado às cidades verdes do futuro – conceito que parece funcionar melhor na teoria do que na prática. Estamos falando de zonas urbanas ultratecnológicas construídas do zero,
que ganharam terreno nos últimos anos, principalmente no Oriente Médio e na Ásia, mexendo com a imaginação de muita gente. É o caso de Masdar, nos Emirados Árabes Unidos, anunciada como “a cidade mais sustentável do mundo”: carbono zero, com energia 100% renovável, veículos elétricos autônomos e torres eólicas capazes de criar refúgios climáticos perfeitos em pleno deserto. A despeito do projeto atraente, assinado pelo escritório de arquitetura e design Foster + Partners, nem tudo saiu do papel. Para começar, o sonho da neutralidade em emissão de carbono jamais foi concretizado, assim como outras ecossoluções se mostraram inviáveis. Mas o principal problema pode ser resumido em duas palavras: escassez populacional. Em quase 15 anos de ocupação, a localidade projetada para 50 mil habitantes chegou apenas à marca de 5 mil residentes fixos.
Segundo o jornal britânico The Times, em uma reportagem de 2023, “apesar das grandes ambições, Masdar ainda é uma espécie de cidade fantasma”, uma área “subdesenvolvida no sentido social e ambiental porque se concentrou muito em ser um laboratório para tecnologias sustentáveis, em vez de um lugar para viver”.
Design para smart cities Enquanto projetos pautados exclusivamente pela tecnologia não estão dando conta dos desafios urbanos atuais, outras maneiras de pensar modelos para cidades inteligentes começam a surgir ao redor do mundo, uma delas com base no design e em suas estratégias e ferramentas. Para Claudio Freitas de Magalhães, coordenador do Laboratório de Gestão em Design da PUC-Rio, “o design sempre buscou soluções para pessoas, porém seu campo de atuação vem se ampliando para além da materialidade. Se o foco inicial estava apenas no objeto, ele se estendeu para a mensagem e, agora, abrange também os processos”.
Fabienne Schiavo, consultora em inovação para cidades e comunidades inteligentes, completa o raciocínio do professor: “A forma de pensar do design, sua visão sistêmica e capacidade de estabelecer relações holisticamente, agindo de modo multidisciplinar para solucionar problemas complexos, nunca foi tão decisiva como hoje, quando buscamos uma transição para cidades e comunidades mais inteligentes e sustentáveis”.
Ao lado de outros pesquisadores da PUC-Rio, Claudio e Fabienne participam da coordenação do Gávea Lab, laboratório de cocriação de ideias que integra o programa Apoio a Projetos da FAPERJ (Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro). Ainda em fase inicial, o Gávea Lab é um projeto piloto que visa a aplicar e testar uma metodologia de desenvolvimento de projetos colaborativos inovadores para smart cities centrada no cidadão e apoiada pelo design thinking. Futuramente, a experiência deve dar origem a um guia para a replicação da metodologia em outras localidades e contextos.
Voltada para a resolução de problemas em qualquer tipo de cenário, a ferramenta design thinking abrange cinco etapas, as quais resumem o método de trabalho do Gávea Lab: escuta empática dos usuários, definição dos problemas, idealização de soluções, criação de protótipos dessas soluções e, por fim, testes e avaliações dos protótipos com os usuários.
Assim, com base em uma pesquisa de campo que durou seis meses e incluiu diversas rodas de conversa com os moradores da Gávea – tanto os do “asfalto” quanto os das duas favelas locais, a Rocinha e a Parque da Cidade –, foram estabelecidas as principais necessidades e prioridades do bairro. O próximo passo não é fornecer respostas prontas, mas, sim, implantar uma matriz de inovação para a região, que permita o surgimento de um fluxo contínuo de inovações engajado pela própria população.
POR CARINE SAVIETTO