SALAS DE COZINHAR

Tudo gira ao redor dela: a cozinha chega ao século 21 como a alma da casa,
o palco dos encontros e o ambiente mais tecnológico do lar

Tudo gira ao redor dela: a cozinha chega ao século 21 como a alma da casa, o palco dos encontros e o ambiente mais tecnológico do lar

POR CARINE SAVIETTO

DESDE OS TEMPOS MAIS REMOTOS, nos reunimos em volta fogo para comer, beber e contar histórias. “Cozinhar foi o que nos tornou humanos”, defende o antropólogo britânico Richard Wrangham, enfatizando que essa transformação não ocorreu apenas por fatores nutricionais, mas também sociais. Segundo ele, o ato do cozimento nos uniu e estimulou a socialização, levando aos primeiros núcleos familiares.

Ainda hoje, mais de um milhão de anos depois, boa parte do que nos torna humanos gira em torno dessas atividades fundamentais e ancestrais relacionadas ao preparo e à partilha de alimentos. Na psicologia, alimentar-se, ser alimentado e alimentar o outro estão entre as ações simbolicamente mais complexas que existem, pois remetem às nossas ligações emocionais primordiais. Com efeito, na cartografia emocional do espaço doméstico, a cozinha é o centro afetivo do lar.

“Não importa o quão tecnológico esse ambiente se torne, ele seguirá sendo o coração da casa”, destaca Marcele Brunel, head de Office Design da Dexco, maior grupo de marcas de acabamentos para construção, reforma e decoração do País. “As pesquisas apontam para o desejo por uma cozinha que facilita as tarefas diárias ao mesmo tempo em que é um espaço para a criação de laços emocionais”, acrescenta.

Paixão pela cozinhaterapia

O estudo Arquitetura da Experiência, encomendado pela Dexco e realizado pela consultoria em tendências Spark:off em 2024, revelou que as cozinhas estão em franca valorização. “Esse cômodo aparece como uma das tendências, como um dos espaços que as pessoas definitivamente querem reformar, melhorar e utilizar como centro das casas”, atesta a head de design.

Na medida em que a cozinha se torna o núcleo das experiências no lar, ela deixa de ser somente funcional e se realinha com sua vocação milenar de salão guardião do fogo – um lugar onde as pessoas se reúnem, se nutrem, socializam, criam memórias e se humanizam. Na contemporaneidade o ambiente é cada vez mais poetizado e encarado como refúgio terapêutico, o local perfeito para explorar a criatividade, aliviar o estresse e promover a saúde mental.

Da serviçal à festiva

Como resultado dessa revolução, se até pouco tempo atrás o mercado imobiliário apostava em cozinhas do tipo corredor e com metragens enxutas, esse cenário vem se transformando. Hoje, até mesmo em apartamentos de 30 m2, ter uma boa cozinha é importante.

“Isso foi mudando com o tempo, mas ficou mais forte depois da pandemia. Muita gente que não frequentava tanto esse ambiente passou a usá-lo. Muitos redescobriram o prazer de cozinhar, de receber, de juntar as pessoas”, analisa a arquiteta Cristiane Schiavoni, de São Paulo. Ainda segundo ela, não faz mais sentido pensar na tradicional divisão setorial da casa, que localiza a cozinha exclusivamente no setor de serviços. “Esse cômodo já faz parte da ala social, onde antes as salas reinavam absolutas.”

Quando as dimensões da cozinha são mínimas, a saída pode estar em diluir barreiras para expandir fronteiras. De acordo com outra pesquisa da Dexco, na discussão entre cozinha aberta ou fechada, atualmente temos empate: 50% dos entrevistados* mantém esse ambiente separado, enquanto os demais possuem a cozinha aberta ou semiaberta. Caso fosse reformar o cômodo hoje, 69% optaria pela integração com a sala, o que indica a tendência do futuro.

Inspiração com perfume caipira

A partir do tema De presente, o agora, a mostra CASACOR SP 2024 propôs aos profissionais desta edição uma reflexão sobre o legado que gostariam de deixar para as gerações futuras. O arquiteto Gabriel Fernandes, do GF Estúdio, respondeu com o espaço Casa Veredas Simoneo, que contempla hall, sala de estar e duas cozinhas integradas: uma com design contemporâneo; outra caipira, inspirada em suas memórias de infância com férias em Palestina, SP, na casa dos avós e nas descobertas de sua pesquisa Brasis que Vi, sobre o morar brasileiro em diferentes contextos culturais.

“As pessoas querem áreas de trabalho funcionais, com bom fluxo de espaço, materiais resistentes, iluminação adequada e até eletromésticos que organizam a rotina com inteligência artificial. Mas o resgate da nossa ancestralidade é essencial para dar sentido a tudo isso. Como diz [o escritor e primeiro indígena eleito pela Academia Brasileira de Letras] Ailton Krenak, o futuro é ancestral – e entender isso é urgente”, observa.

Em sua cozinha caipira, o arquiteto incorporou elementos da casa tradicional brasileira, como o fogão a lenha e o filtro de barro, que, como ele faz questão de frisar, estão longe de ser itens do passad.: “Embora não tão presentes em alguns centros urbanos, eles continuam fazendo parte do lar brasileiro, de Norte a Sul do País.”

Tudo azul em torno da mesa

Semelhante olhar afetuoso transborda na Cozinha Torno, projetada para a mesma mostra pelo arquiteto Bruno Reis e pela designer de interiores Helena Kallas, do escritório
Mandril Arquitetura. Um dos pontos de partida da proposta foi a introdução do azul, cor calmante e acolhedora, que está diretamente relacionada a lembranças que os sócios têm de suas respectivas ancestralidades. Enquanto a avó de Bruno gostava de usar a expressão “tudo azul” para dizer que estava bem, a de Helena sempre a cobria com um “manto azul de proteção”.

Assim como as rezas e as receitas de família, as artes manuais também fazem parte de toda essa riqueza. “Para o tampo da mesa, elemento central do espaço, trouxemos um material feito à mão”, conta Helena, revelando que a escolha recaiu sobre um revestimento cerâmico decorado e pigmentado de azul intenso, idealizado pela dupla e produzido pelo Ateliê Cerâmica e Cia.

* Pesquisa realizada com uma amostra de 400 pessoas, em sua maioria da Classe B, com idade média de 41 anos e moradoras da região Sudeste

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