Nem gravurista, nem pintora, nem artista multimídia… Aos 85 anos, Regina Silveira denota satisfação ao recusar rótulos de especialista nisso ou naquilo. Ela é simplesmente artista – uma das maiores que o Brasil já produziu.
POR CRISTIANE TEIXEIRA
A fala desenvolta não deixa espaço para reticências. Nem ao mencionar a intensa agenda profissional de 2024 – repleta de novos projetos e montagens de instalações e exibições no Brasil e no exterior –, nem ao responder se algum dia cogitou outro ofício: “Nunca”, dispara. A firmeza também transparece ao comentar se a opinião do espectador a influencia: “Não me importa o que as pessoas estão achando, pois sempre sei o que eu quero dizer”. Regina Silveira é assim, franca.
Enquanto apresenta o ateliê colado a sua casa no bairro do Sumaré, na Zona Oeste paulistana, ela indica as maquetes de trabalhos dos anos 2000 para cá. Foi quando começou a focar em intervenções gráficas sobre a arquitetura, num processo de criação de padrões que se converte em matrizes digitais. Essas, por sua vez, podem ser levadas para outros contextos, outras edificações, admitindo configurações inéditas. Entre os padrões mais recorrentes, sobressaem insetos, mãos, pés e bordados. “Raramente eu faço maquetes de estudo. Essas aqui são para a memória, porque quase todas as obras são efêmeras”, diz.
Das realizações permanentes, três estarão sob os holofotes do Terminal Internacional Mickey Leland, do Aeroporto de Houston, nos Estados Unidos, ainda por inaugurar (no fechamento desta edição, a previsão era que isso ocorresse em junho de 2024). Também perene é o livro de arte Fascination (2015), da Gervais Jaussaud, que conjuga os universos criativos de Regina e do famoso escritor coreano Ko Un. A edição limitada, com apenas 12 exemplares, reúne poemas do coreano e motivos visuais trabalhados na forma de recortes e traço pela brasileira e seus assistentes.
DIÁLOGO COM O ESPAÇO E A CIDADE
De volta ao ambiente do ateliê, chama a atenção a miniatura da sede da Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, concebida pelo português Álvaro Siza. “Na exposição que fiz por lá (Mil e Um Dias e Outros Enigmas, de 2011), pude homenagear minha cidade natal. A intervenção na fachada produziu uma interação muito forte com o céu, a luz do dia e o Guaíba, que fica bem à frente. E dentro havia intervenções pontuais, em conversa com a arquitetura do Siza”, explica a gaúcha nascida em 1939, enfatizando sua paixão pelo espaço construído e por toda a semântica que ele envolve.
Sete décadas atrás, impressionados pelos retratos que a filha de 12 anos fazia dos colegas, os pais – um pediatra brasileiro e uma ex-cantora lírica italiana – a mandaram para aulas particulares de desenho e pintura. Aos 18, a adolescente já apresentava suas aquarelas em uma primeira exposição individual. Aos 21, se graduava no Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e tomava uma decisão radical, recusando-se a cumprir o destino de moça casadoira sonhado por sua mãe e endossado pela sociedade porto-alegrense do início dos anos 1960. Depois dessa quebra de paradigma, outras aconteceram enquanto Regina buscava o próprio caminho nas artes. O horizonte começou a clarear em 1967, quando partiu para a Espanha como bolsista da Faculdade de Filosofia e Letras de Madri e teve a oportunidade de se aproximar da experiência de artistas estrangeiros mais conceituais que, lembra, “adotavam uma posição política e usavam o espaço público para provocar mudanças de comportamento, a exemplo do Allan Kaprow”.
Ele estaria naquela avenida símbolo do poder para proteger as pessoas ou as instituições?
Tamanho é o interesse pela arquitetura urbana que, em 1999, convidada a levar para o Museu de Arte Contemporânea de Monterrey, no México, uma exposição então em curso
no Masp (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand), Regina recusou o chamado, mas não sem lançar uma contraproposta. “Eu tinha sido tão impactada pelo edifício do arquiteto Ricardo Legorreta que sugeri pensar em algo específico para o local.” Durante um ano, enquanto trabalhava na ideia com um colaborador, as linhas da arquitetura, as entradas de luz e as sombras projetadas alimentaram seu imaginário. Os planos acabaram engavetados, porém não esquecidos: ao lado de outros nove projetos com a mesma sina, integraram a exposição Unrealized/Não Feito, de 2019, organizada pela galeria Alexander Gray Associates, que desde 2009 representa a artista brasileira em Nova York.
<< Ao lado, projeção a laser Super-Herói Night and Day. Acima, bracelete da coleção de joias têxteis Roller Series.
O BOM HUMOR É REGRA
Muitos são os espaços, nacionais e internacionais, já modificados pelo olhar dela, como o Palácio de Cristal do Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia, de Madri, Espanha, que em 2005 recebeu a obra Memoriazul, e o Masp, adesivado em 2010 com um céu bordado cheio de nuvens brancas (Tramazul). Foi para a mesma Avenida Paulista do icônico museu projetado por Lina Bo Bardi que Regina idealizou aquela que afirma ser sua primeira criação em grande escala: Super-Herói Night and Day, de 1998. Tratava-se da sombra em vinil de um herói de quase 40 metros de altura aplicada no exterior de um prédio; à noite, uma projeção a laser fazia o super-homem colorido voar sobre a rua. “Ele estaria naquela avenida símbolo do poder para proteger as pessoas ou as instituições?”, provoca a autora.
A procura de significados assinala a trajetória de quem já experimentou inúmeras linguagens, das tradicionais aquarela e gravura às realidades aumentada e virtual. O suporte, diz a artista, é só um meio “de usar a imagem gráfica para tentar entender o real, tentar entender o que se vê”. Dez anos atrás, por exemplo, um Rolls-Royce e as rampas do Pavilhão da Bienal foram adesivados com a obra Derrapagem (2014) durante a SP-Arte. No ano seguinte, o mesmo padrão de marcas de pneus se converteu em uma coleção de joias têxteis, a Rollers, desenvolvida em parceria com a ex-aluna e designer Renata Meirelles.
Antigos pupilos não só colaboram com Regina em alguns de seus projetos, mas também são companhia para programas sociais – como os jantares do seleto Unidos da Sopa. O grupo surgiu quando a artista presenteou cerca de dez desses amigos com uma Sopeira Assombrada (2013), obra que nasceu da intervenção em uma peça de uma tradicionalíssima marca portuguesa de porcelanas. “Vários artistas brasileiros atenderam ao chamado da Bordallo Pinheiro. Eu apliquei uma imagem da minha mão no tampo da sopeira e, por cima, coloquei muitos sapos, que são um elemento comum entre o meu trabalho e o da empresa”, conta.
Echarpe da coleção de joias têxteis Roller Series.
Ex-alunos são presença constante no dia a dia da ex-professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP), da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), da Universidad de Puerto Rico e do Instituto de Artes da UFRGS. “No sentido acadêmico, eu não ensinei nada a eles. O que fiz foi ajudá-los a localizar a própria poética. Eu os ensinei a pensar”, avalia Regina, afirmando que as trocas com as novas gerações de artistas contribuem para que ela se mantenha em contato com o futuro, o que sempre a interessou.
Instalação Derrapagem, na SP-Arte de 2014.