Entre a arquitetura e a vocação industrial, o design de Percival Lafer segue essencial, atualmente apreciado como referência de conforto e estética à prova do tempo
POR SILVIA GOMEZ
OS ANOS 1960 COMEÇAVAM. Na foto da época, um homem magro de 1,71 m de altura, camisa bege, calça marrom e óculos de grau, aguarda por visitas no estande da marca que leva seu sobrenome: Lafer. O evento era a Feira de Utilidades Domésticas, a UD, mostra anual que se tornaria esperada pelo público de São Paulo nas décadas seguintes. Ali estava Percival, tão jovem quanto seus primeiros móveis em exibição, hoje clássicos disputados por colecionadores. “Isso, para mim, foi uma surpresa total. Primeiro porque eu não divulgava meu nome. Os móveis tinham apenas uma etiqueta em um cantinho, com o escrito: Made by Lafer Brasil”, revela.
Aos 88 anos, Percival Lafer tem seu trabalho visitado como um dos nomes fundamentais a partir dessa década notável para o design brasileiro, a de 1960, período às portas da ditatura que viu em atividade arquitetos-designers pioneiros como Sergio Rodrigues (1927-2014), Jorge Zalszupin (1922-2020) e Lina Bo Bardi (1914- 1992). Ele próprio é também um arquiteto-designer, chamado ao mobiliário por uma circunstância familiar que mudaria seu caminho em 1960, ano em que faleceu seu pai, Benjamin. Foi quando Percival e os irmãos, Oscar e Samuel, assumiram a Móveis Lafer, fundada em 1927 como um comércio pequeno no bairro paulistano Cambuci. “Eu estava me formando em arquitetura.
De 1961, a poltrona MP-1 é o primeiro projeto de Percival Lafer. “Uma madeira fininha sustenta o móvel, porque tem a alma de aço”, define o designer. A linguagem arquitetônica se faz presente no desenho. “A ideia veio do concreto armado, por causa dessa estrutura. Pensei: vou chamar de madeira armada”
A loja vendia móveis de outros fabricantes, modelos com sistemas convencionais que eu rejeitei desde o primeiro instante. Eu ia para lá e me perguntava: ‘O que eu vou fazer aqui?’”, conta Percival. A resposta não tardou: estava nos fundos da sede, em um maquinário comprado em 1941 para produzir peças para dormitórios, empoeirado desde que a ideia fora abandonada por Benjamin. “Decidi começar a brincar”, lembra Percival.
Num exercício de liberdade, a linguagem arquitetônica acompanhou os desenhos, somada à descoberta do fascínio pela engenharia dos mecanismos estruturais. “O Percival ajudou a desenhar os anos 1960 e 1970 em um movimento que trouxe força para a produção industrial, período em que se começa a usar metal e fibra de vidro, uma novidade no Brasil. O resgate e a valorização de seu mobiliário, nos últimos anos, têm despertado o interesse de designers nacionais por seu processo criativo e construtivo”, analisa a jornalista e curadora da área, Regina Galvão. Em 2017, ela incentivou o galerista Teo Vilela Gomes, da Galeria TEO, a realizar uma retrospectiva da obra do designer. “Foi muito importante fazer essa exposição, reunir tantas peças. A gente pôde observar uma série de coisas. Pioneiro atento aos processos de industrialização e ao mercado internacional, Percival agregou ao móvel moderno brasileiro ergonomia e uma nova plasticidade”, observa Teo.
Móveis patenteados
Em menos de um ano de experimentações nos fundos da loja da Lafer, veio ao mundo a MP-1, poltrona com estrutura de aço e madeira e assento de espuma laminada. A sigla MP, para “móveis patenteados”, seguiria como uma tônica dos produtos numerados de Percival. Ele conta: “Eu queria, veja você, sem saber o que viria pela frente, inventar uma linguagem com características construtivas e de industrialização em grande escala. Então comecei a oferecer ao mercado”.
Com a estratégia, a Lafer pegou. À MP-1, seguiram-se conjuntos popularmente chamados de “ternos” (três peças): poltronas casadas com sofá e mesinha. Em 1965, nasceu até um sofá-cama, linha MP-7, cuja engrenagem desenvolvida ao longo de um ano e meio de testes ilustra um diferencial da marca, ou seja, o sistema mecânico engenhoso – nesse caso, acionado por um só pedal, inovação para o momento e sucesso de vendas. A campanha publicitária do estofado anunciava: “Bom desenho ao seu alcance. Lafer assina, orgulhosamente, tudo o que cria”.
A linha MP-7 abriu o campo para os modelos articulados, levando, no final dos anos 1980, aos sofás e às poltronas reclináveis que acabaram por identificar a Lafer inclusive no mercado externo – a empresa chegou a somar 35 franquias nos Estados Unidos. “Ele conseguiu ter produtos com identidade, forma e solução únicas. Hoje podemos distinguir: isto é do Percival Lafer… O modo de usar o couro, assumindo as sobras e o enrugamento, a costura diferente e, para mim, seu maior legado, a lógica de ter pensado seus produtos como montáveis, o tamanho de cada embalagem para exportação, a racionalidade por trás de cada peça”, detalha a designer Roberta Banqueri, admiradora do colega de profissão. “Amo o jeito como o Percival tratava o couro. Ele deixava o couro ser couro, no sentido de não interferir muito. O produto não precisa estar sempre comportado, pode apresentar sua verdade.”
O conforto é um relato comum
de quem descreve os modelos de Percival. Ele mesmo se confessa obcecado pela noção de ergonomia. “Eu era o meu testador. A minha forma de criar foi fazer o móvel, não desenhar. Era tudo na base de croqui e prototipagem”, conta.
Ao futuro
Depois de 95 anos de existência, a Lafer fechou em 2022. Mas Percival continua desenhando. Desde 2023, a paulistana ETEL, fabricante de mobiliário artesanal de design moderno e contemporâneo brasileiro, oferece itens assinados por ele. “A ETEL é uma editora de design que tem por filosofia recontar a história do design brasileiro, e a minha missão é preservar a memória desses grandes autores. Eu já falava sobre o Percival em palestras e me envolvi com ele e com a família para esse desenvolvimento. Não é uma reedição, mas uma edição. Houve o redesenho e a adaptação das peças pelo Percival pois o modo de produzir da ETEL, um ateliê, é diferente do modo da Lafer, uma indústria”, explica Lissa Carmona, à frente da marca ao lado da mãe, Etel Carmona. Entre os móveis, estão o sofá PL-61, de 1970, e a poltrona PL-115, de 1973. Foram concebidos há mais de meio século, mas seguem atemporais como aqueles exibidos pelo então jovem Percival na Feira de Utilidades Domésticas, no início dos anos 1960.
Quando perguntado sobre a receita para encarar o teste do tempo, ele volta à lição da fábrica e ao diálogo entre forma e função, máxima modernista definida pelo arquiteto Louis Sullivan (1856-1924): “Eu acho que o desenho levado a sério como desenho industrial, realmente, já nasce atemporal. Não tem recursos estéticos não essenciais”.