Os rótulos e os formatos e embalagem das garrafas revelam os diferentes momentos da bebida: de quando era considerada bebida popular, no início do século 20, até os dias hoje, quando ganhou status os ricos.
POR ELVIS CESAR BONASSA
O rótulo de cachaça só apareceu quatro séculos depois do início da produção da bebida no Brasil. Cachaça era um de seus nomes mais conhecidos, mas não era oficial, ainda. Ela recebia o nome genérico de “aguardente de cana”, que servia para qualquer destilado da cana-de-açúcar, com graduações alcoólicas e formas de produção das mais variadas.
Até o início do século 20, a aguardente de cana era transportada e comercializada em barris, até os pontos de distribuição, para venda em doses ou para encher garrafões dos fregueses, ou de porta em porta, em medidas de cinco litros. Sem garrafas e sem rótulos, era uma bebida “popular”, no sentido de que popular é pra gente pobre. E, por isso, de má fama.
Mario de Andrade, entusiasta da “marvada” (chegou a servir cachaça em taças de champanhe durante a Semana de Arte Moderna), atribui a essa má fama a existência de tantos apelidos diferentes para a bebida. “É o princípio elementar de magia que manda nunca dizer pelo seu próprio nome as forças maléficas, como o diabo, a doença, a cachaça”, diz ele em um artigo de 1944 em que recolhe dezenas de “eufemismos” – jurubita, branquinha, orogange, abrideira, marafo, piripita, além da até hoje clássica pinga, para ficar em poucos exemplos.
A primeira cachaça engarrafada e rotulada foi, provavelmente, a Ypióca, produzida em um alambique cearense, perto da Vila de Maranguape, por volta de 1911. A ideia partiu de uma mulher, também autora desse primeiro rótulo, Eugenia Menescal Campos, que herdou o sítio após o falecimento do marido. Ela criou o logotipo da marca, usado até hoje, mesmo após a empresa ser adquirida por uma multinacional do setor.
Eugenia queira modernizar a forma de comercialização e, para afastar a má fama, dar um status diferente à bebida, equiparando-a aos destilados sofisticados de outros países – como a bagaceira portuguesa e o whisky escocês. Essa tentativa ficou explícita, em um rótulo posterior, de 1920, que assume o título de “delicioso whisk nacional”, para uma versão envelhecida em toneis de madeira.
A tentativa de Eugênia de reposicionar a cachaça como bebida chique era muito avançada para sua época – isso só vai acontecer bem depois, nos anos 2000. Mas o uso de engarrafamento e rótulos, com identificação da marca, rapidamente se tornou padrão, como resultado da crescente modernização e urbanização do país.
Em 1938, engarrafar e rotular transformou-se em obrigação, por decreto de Getúlio Vargas impondo o limite de um litro para os recipientes de bebidas destinados ao comércio varejista e aos consumidores com identificação do produtor e dados do produto no rótulo, além da estampilha de impostos.
Foi aí que começou a era de ouro dos rótulos de cachaça, obrigatórios por decreto e favorecidos pela existência de um grande número de oficinas de litografia – já ameaçadas pelo offset, mas ainda muito presentes nas várias regiões do país.
A demanda era tão forte que muitas oficinas litográficas dispunham de catálogos com modelos básicos de rótulos, a serem adaptados ao nome de cada cachaça, o que explica a existência de diferentes marcas com rótulos quase idênticos.
As litografias possuíam diferentes graus de qualidade técnica, reproduzindo a oposição coisa de pobre versus coisa de rico. Para as cachaças populares, usavam, em geral, de três a quatro cores, chegando no máximo a seis, para tornar o processo mais simples e econômico. Para artigos de luxo, como sabonetes e charutos, podiam ser empregadas até doze cores, com uso de técnicas de textura e relevos, eventualmente cores metálicas, levando a resultados muito mais sofisticados.
Surgiram várias linhas temáticas para os nomes e os rótulos da cachaça: figuras de mulher, animais, paisagens, efemérides, humor, sexualidade (principalmente nos rótulos pícaros, muitas vezes lançando mão de preconceitos). Há aqui uma característica notável: em grande parte dos casos, não se tratava de firmar uma “marca”, caracterizar a qualidade ou a especificidade da bebida, mas de vender propriamente o rótulo. Eram marcas efêmeras, se é que se pode chamar de marcas a profusão de nomes de ocasião.
Uma das temáticas mais interessantes, pela ironia e por uma certa posição de resistência popular, era a afirmação dos “males” da bebida como pontos positivos, a valorização da embriaguez, do esquecimento, da indolência.
É o caso, por exemplo, da “puríssima” Deixa Cair (de São Paulo, SP), com um homem negro embriagado, de camisa listrada, tropeçando nos próprios pés. Ele segura na mão esquerda uma garrafa idêntica da Deixa Cair, com o mesmo rótulo, sugerindo uma janela de infinito da imagem dentro da imagem.
As aguardentes Whisky de Pobre (Casemiro de Abreu, RJ), com a figura de um trabalhador descalço entornando um copo da bebida, e Alegria de Pobre (Macaiba, RN), com as imagens de pai, mãe, crianças, bebê de colo e cachorro, brincando ao ar livre, são afirmações da embriaguez como a felicidade possível – para os pobres.
Muitas dessas bebidas eram de qualidade inferior, algumas com graduação alcoólica muito baixa – em torno de 20gl. Em geral, a qualidade da bebida não estava ligada à marca, mas ao local de produção. Durante muito tempo, por exemplo, Paraty (RJ) foi sinônimo de cachaça. É o que se vê no samba Camisa Listrada de Assis Valente, de 1937, com os versos “Vestiu uma camisa listrada e saiu por aí / Em vez de tomar chá com torrada ele bebeu Parati”. No meio dessa profusão de nomes e rótulos, houve algumas cachaças que acabaram se firmando como marca e até mesmo referência, ou pela qualidade, ou por estratégias de propaganda no rádio.
O rádio estreou no Brasil em 1922, mas só dez anos depois foi autorizado a veicular propaganda – o que permitiu aumentar receitas e expandir-se pelo país. Na esteira do crescimento do rádio, nos anos 40, aparece a propaganda da cachaça Tatuzinho, de Piracicaba (SP). O jingle da marca (“ai Tatu, Tatuzinho, abre a garrafa e me dá um pouquinho”) é até hoje um dos mais lembrados e foi responsável por fazer da Tatuzinho a cachaça mais consumida no país durante muitos anos.
O rótulo da Tatuzinho seguia o padrão da litografia de até seis cores, usando elementos comuns: uma faixa em vermelho com o nome da bebida, sobre um tatu ladeado por pés de cana-de-açúcar. A diferença em relação a outras cachaças com rótulos semelhantes é que ela se consolidou como marca. Com o sucesso, outras cachaças seguiram modelo. A Pitu, de Vitória de Santo Antão (PE), é um bom exemplo e alcançou grande parcela do mercado.
O surgimento das grandes marcas industrializadas muda progressivamente o padrão do consumo da cachaça no Brasil. As cachaças de alambique, de pequena produção, com seus nomes e rótulos efêmeros, entram em declínio. Algumas das antigas cachaças artesanais sobreviveram a essa mudança, graças à força das localidades em que são produzidas – como a região de Salinas (MG) e a cidade de Paraty (RJ), além de produtores do Sul e do Nordeste.
A partir dos anos 90, há uma retomada da produção de alambique. Esse movimento de valorização da cachaça desemboca, em 2003, na edição de um decreto que define a cachaça como “denominação típica e exclusiva da aguardente de cana produzida no Brasil, com graduação alcoólica de trinta e oito a quarenta e oito por cento em volume (…) com características sensoriais peculiares”.
O decreto diferencia a cachaça da aguardente de cana em geral: a aguardente pode ter até 54% de graduação alcoólica, permitindo-se a destilação direta. No caso da cachaça, o limite é 48%, obtida exclusivamente pela destilação do mosto fermentado.
Para além das definições técnicas, o decreto (que sofreu alguns ajustes em 2009) oficializou a criação de um diferencial, com a afirmação de um produto único, tipicamente brasileiro. Também serviu para a produção industrial, mas foi a destilação de alambique que se beneficiou mais dessa valorização.
É uma questão de mercado, de posicionamento da cachaça como bebida de alta qualidade, preço mais elevado e padrão internacional. Tratou-se de fazer, no início do século 21, o que Eugenia Menescal Campos queria fazer no início do século 20. Deu certo. Mas, tirando o nome, esse produto renascido tem pouca coisa em comum com a antiga produção dos
alambiques tradicionais. As técnicas de produção, as análises químicas, os controles sensoriais, a diversidade de madeiras para envelhecimento – nada disso existia nos tempos do rótulo de litografia. O rótulo e as garrafas também são de outra natureza. Com o reposicionamento de mercado, foram adotadas garrafas de diferentes formatos, algumas com o uso de rolhas especiais e rótulos em papel ou gravados diretamente no vidro. Hoje, os nomes e os rótulos já são concebidos dentro de uma estratégia de marketing e criação de marcas.
Mesmo cachaças mais tradicionais – como a própria pioneira Ypióca – modernizaram rótulos e embalagens e lançaram edições especiais, com garrafas semelhantes às de uísque embaladas em caixas especiais.
Com isso, a cachaça, reconhecida por decreto, em apresentação “premium”, foi finalmente adotada, sem vergonha, pelas classes mais ricas. A cachaça popular, essa continua a existir, a preço baixo, em garrafas cor de âmbar e com tampas de metal. Ou nas garrafas comuns de bebidas industrializadas de produção em grandes quantidades. A cachaça (pelo menos em parte) subiu de status, mas a desigualdade social continua a diferenciar quem consome o quê.