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Mutarelli e suas ilhas

O escritor, ator, professor, dramaturgo e quadrinista fala sobre sua obra, sempre costurada em seu cotidiano,
e revela que a morte é sua musa.

POR RICARDO SOARES

A mais recente mensagem na garrafa que chega do Lourenço Mutarelli é seu O Livro dos Mortos, que funde com habilidade o mundo ficcional com o real numa simbiose de autor e obra poucas vezes vista na literatura brasileira. Ou seja, deu certo a tal mistura de biografia e ficção, ou a tal autoficção, terminologia da moda atualmente.

Nesse movimento recente dos barcos criativos do Mutarelli, está o relançamento também de seu original volume de história em quadrinhos A Caixa de Areia ou Eu Era Dois no Meu Quintal, onde dois parceiros (Kleiton e Carlton) passam os dias dando rolês por um deserto imenso e infindo, divagando sobre tudo e todos. Ao mesmo tempo, a “história” é costurada com o cotidiano de um quadrinista chamado Lourenço, que vê o tempo passar matutando sobre o mistério dos brinquedos perdidos de sua infância que apareceram na caixa de areia do seu gato.

Acima, capas dos romances de Mutarelli

Em qualquer perfil que se faça de um escritor, fica difícil fugir dos clichês que definam a (vá lá!) “vida e obra”, que acabam por se costurar uma na outra. No caso do Mutarelli, então, até pela natureza do seu trabalho, é ainda mais complicado. Ele não cabe em rótulos ou gêneros literários, visto que respira ficção, quadrinhos, cinema, atuação como ator e outros pendores num sujeito só, que quase aos 60 anos vem literalmente repensando a vida diante de um recente diagnóstico sombrio ao redor do seu coração infartado.

No dia de nossa prosa telefônica para a confecção desse texto, ele me confidenciou de maneira realista recente diagnóstico de seu cardiologista sobre o seu estado de saúde: 70% do seu coração está necrosado em virtude de um infarto sofrido em 28 de setembro de 2021, quando ele tinha exatos 57 anos, cinco meses e 11 dias, conforme gosta de deixar precisamente claro. Isso o coloca diante de uma perspectiva única: o cara a cara com a morte. “O infarto mudou tudo. A musa, agora, é a morte “, diz o autor.

Diante desse quadro, o seu recente O Livro dos Mortos vira mais ainda um livro dos vivos já que, no caso, é mesmo um caldeirão de personagens vivíssimos, bem dispostos
ou não, ativos ou nem tanto, que se fundem nos limites da autobiografia com a ficção. Literalmente um naco da canção Sangue Latino, dos Secos & Molhados, que faz alusão a “minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos”.

No meio de suas ilhas, acho que posso definir Lourenço Mutarelli como um “possesso” criativo

 

O paulistano escritor, ator, professor, dramaturgo e quadrinista nasceu na Vila Mariana e sempre teve uma relação contraditória com o pai quando ele era vivo e ainda mais depois que faleceu, em 2001. É uma figura capital na gênese de sua experiência criativa. Tinha ótimo traço como desenhista, virou policial e depois torturador para “ganhar” a vida. Mutarelli conta que, quando o pai chegava com a manga da camisa dobrada, era sinal de que havia saído de uma sessão de tortura e que ele, filho, também iria entrar na ciranda da pancadaria. No meio dessa brutalidade toda, o pai paradoxalmente era leitor compulsivo de Mário Puzo e tinha uma bela coleção de histórias em quadrinhos, com destaque para os Flash Gordons e Spirits.

Daí o Lourenço teve contato – como leitor e autor – primeiro com os quadrinhos, onde exerceu durante tantos anos de faina o milagre da multiplicação das tiras onde transborda um humor ácido, desalento e desamparo de muitos personagens. Talvez porque Mutarelli tenha vivido, no começo da vida criativa, num mundo que não se permitia a sensibilidade. “E eu era um menino muito sensível”, como lembra em uma passagem do seu O Livro dos Mortos. A sua mais nova publicação, na verdade, pode se desdobrar em duas, segundo a proposta do autor. Isso depende do leitor, que pode optar por ler tudo com ou sem as caudalosas citações nos pés das páginas. Uma leitura não prejudica a outra.

Pode até agregar conforme o gosto do freguês. Mas a escolha é livre, diz o autor. Se o leitor decidir por ler todas as citações, saiba que vai esbarrar em narrativas muito saborosas e outras muito maçantes, como reconhece o próprio Mutarelli em rasgo de sinceridade. E nas citações tem de tudo. Um mapa da mina de onde se origina o universo criativo do autor, que vai do magistral sonetista e poeta Glauco Mattoso ao ator Paulo César Pereio, índios encolhedores de cabeças, supermercados extintos e Jorge Luís Borges, que Mutarelli confessa ter redescoberto na maturidade com muito gosto.

Acima, formas e letras fazem parte dos trabalhos de ilustração do artista

Para tornar esse relato um pouco mais chic, vou apelar a um recurso usado por 10 entre 10 intelectuais. Citar Roland Barthes especialmente no livro O Rumor da Língua, onde diz que “a palavra é irreversível, tal é a sua fatalidade. Não se pode retomar o que foi dito, a não ser que se aumente: corrigir é, nesse caso, estranhamente, acrescentar”.

Não há, pois, como citar esse trecho e não lembrar de Mutarelli tanto pela irreversibilidade dos seus achados como pela fatalidade (ou não) de retomar o que já foi dito. Mas sempre de maneira diferente, criativa, reinventando. Observa-se isso desde os seus inúmeros álbuns de histórias em quadrinhos a seus primeiros títulos de romances publicados, como O Cheiro do Ralo, que o tornou de certa forma famoso, inclusive com a adaptação do livro para

o cinema – onde também já teve elogiadas atuações como ator nos filmes É Proibido Fumar e Que Horas Ela Volta?, dirigidos por Anna Muylaert, e Natimorto, baseado no seu livro de mesmo nome e dirigido por Paulo Machline. Neste último longa-metragem, uma espécie de caça-talentos leva uma cantora para participar de uma audição com renomado maestro. Enquanto esperam, ficam hospedados em um quarto de hotel, onde o futuro da cantora é lido usando advertências de maços de cigarro como se fossem cartas de tarô.

Em O Livro dos Mortos, uma imagem especialmente tocante é a de dois personagens que viveram uma mesma experiência: se perderam em uma praia quando eram crianças. É uma das muitas simbologias que Mutarelli usa para dar pistas ao seu leitor de quem ele realmente é. Mas, na verdade e no fundo, ele é uma legião que não é muito afeita às redes sociais – que só usa para divulgar o próprio trabalho – e diz ficar deprimido quando vê nas redes “os amigos posando sem camisa”. Também não dá muita importância às tais novidades literárias, embora acompanhe – nem tão de perto, admite – os fazeres dos amigos escritores mais próximos. Concorda que hoje em dia existem muito mais autores que leitores que, para ele, devem ser conquistados com todos os recursos nesses tempos de dispersões para livros e autores.

Acima, coração assinado por Mutarelli

Sim, é um professor de escrita criativa que curte o ofício, embora reconheça que ele venha sendo exercido por uma porção de incompetentes e curiosos. Mas, condescendente, explica: “Nem todo motorista de Uber sabe dirigir, né?”. Sim, também é autor e leitor disciplinado e, mesmo que não escreva e desenhe todo dia, fica imerso em sua toca, seu ambiente criativo para não perder a mão. E avisa que está imerso na criação de um novo romance, uma espécie de inventário diante da perspectiva da morte, ainda sem título definitivo.

Para encerrar, no meio de suas ilhas, acho que posso definir Lourenço Mutarelli como um “possesso” criativo. Empresto o termo dele e do livro de Dostoiévski, pois ele o aplica ao que faz com seus pupilos nos cursos de escrita criativa que ministra. “Falo sempre que quero todos eles em possessos criativos”. Assim são os processos desse autor que, coração combalido ou não, espero que viva ainda muito para seguir desafinando os coros dos contentes.
E, como diz numa retumbante passagem de seu O Livro dos Mortos: “A vida às vezes passa rápido. Quando nos damos conta, já não faz sentido tentar consertar certas coisas”.

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