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EXPEDIÇÃO ARTE POPULAR

Acima, Zé Bezerra

POR RENAN QUEVEDO

TESOUROS DA ESTRADA
Poucas coisas me encantaram tanto na vida quanto a arte popular brasileira. Foi arrebatador desde o primeiro momento. Há mais de 10 anos, me dei conta da profundidade e das diferentes expressões envolvidas no assunto. Senti que não havia escolha: em 2017, ainda inserido na publicidade, resolvi mudar de profissão e criar o Novos Para Nós – um projeto de mapeamento e divulgação de artistas populares por todo o Brasil. De lá pra cá, percorri mais de 200 mil quilômetros pelo País, pesquisei a vida e a obra de centenas de artesãos e tive o prazer de curar exposições com o intuito de celebrar a produção brasileira.

Uma das definições de que eu mais gosto sobre arte popular (e sinalizo inúmeras ressalvas para esse termo) – e que mais ajuda a desenhar na cabeça das pessoas o que talvez estejamos, de fato, falando – é a proposta por Eduardo Galeano: um complexo sistema de símbolos de identidade que o povo cria e preserva. São autodidatas que se dedicam a produzir trabalhos com estreito vínculo com a cultura nacional. Ao entrar em seus ateliês, me deparo com obras que carregam histórias, estilos individuais, sonhos, desejos, insatisfações, entre tantos outros sentimentos. A seguir, uma lista de 10 peças e artistas que me marcaram ao longo dos anos e trouxe para dentro de casa – e certamente continuarão a me encantar diariamente.

1. ZÉ BEZERRA
Pela mata baixa do Vale do Catimbau, Zé Bezerra (1952) caminha só com o que é realmente necessário – um facão e seus tantos anos de vida. Sem segunda chance. É ali que encontra sua matéria-prima: a umburana morta e retorcida. O movimento que a madeira naturalmente possui é o ponto de partida para o olhar de Bezerra, que o vê identificando seres do seu imaginário. E aí não tem dúvida: basta um baixo e decisivo número de cortes para sua criação parar em pé. A ação do facão não abre espaço para hesitação. O gesto traz sabedoria a ponto de ora revelar os bichos que imagina, ora se esconder por trás da própria sedução. Guimarães Rosa parece familiarizado com o processo criativo de Bezerra ao dizer que “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”.

Gentilmente, é convocado um olhar distante das óbvias afirmações, só possível com a presença das obras desse expoente popular. Zé Bezerra nos dá o presente mais útil e raro para a atualidade: a chance de vivermos incertezas.

 

Peças de Izabel Mendes da Cunha

2. IZABEL MENDES DA CUNHA
Dona Izabel, como ficou conhecida a maior bonequeira do Vale, teve um árduo e longo caminho até sua consagração como artista. Na década de 1960, viúva e com filhos pequenos, fazia panelas na tentativa de sustentar a família enquanto a fome era uma constante. Todos os sábados caminhava mais de 20 km para vender seus objetos na feira – equilibrava suas peças em panos que envolviam seu corpo, apoiava uma criança em cada braço e os outros dois iam andando. Um dia, inventou de colocar uma cabeça de mulher como tampa das moringas inspirada nas bonecas da própria infância. Nas décadas seguintes, Dona Izabel criou centenas de outras bonecas inspiradas nas mulheres do Vale do Jequitinhonha, com destaque para as noivas. Em 2004, a artista ganhou o primeiro lugar do Prêmio da UNESCO de Artesanato para a América Latina, e seu trabalho foi sendo cada vez mais disputado entre os colecionadores. Durante a vida, ensinou seus filhos e vizinhos o ofício do barro, e a cidade onde viveu, Santana do Araçuaí, tem grande parte da economia atual vinda do artesanato. Dividiu seu conhecimento porque sabia que não era para sempre e, ao invés de esgotá-lo, só se multiplicaria.

A foto traz algumas das bonecas que consegui garimpar Brasil adentro e, uma delas, vinda de um colecionador que saiu de moto de São Paulo até o Vale do Jequitinhonha para conhecer Dona Izabel na década de 1990. Gostou tanto da peça que comprou, mas não sabia como trazer de volta para casa. Segundo ele, a artista olhou bem para a moto e sugeriu amarrar a peça na garupa. Com muito cuidado, percorreu os mais de 1.000 quilômetros carregando o tesouro!

 

 

Peça de Efigênia Rolim

3. EFIGÊNIA ROLIM
Efigênia Rolim (1931), natural de Abre Campo (MG), iniciou sua produção artística em Curitiba (PR). Conhecida como “Rainha do Papel de Bala” há mais de 30 anos, um fato mudou toda a sua história: andava pela rua quando viu um objeto brilhante no chão. Surpresa, se abaixou para pegá-lo; era “apenas” um papel de bala. Pensou nas relações que estabelecemos com pessoas e concluiu que, enquanto o papel tivesse uma função embrulhando o doce, despertaria interesse por parte de alguém. Chamou-o, então, de “mísero caído”. Começou a recolher todos os que via pela frente, pensando: “Se conseguir um por dia, no final do ano tenho 365”
– enquanto as pessoas só a chamavam de louca. “Ninguém achou que eu fosse vingar.”

 

Acima, Paulo Tó

4. PAULO TÓ
Paulo Tó é ex-funcionário da conservação das rodovias de sua cidade, Engenho do Ribeiro (MG), e um sujeito de bem com a vida. Começou a se aventurar pela madeira quando sua esposa, Dona Francisca, precisava muito de um presente para o afilhado – saiu, então, um caminhãozinho. Engrenou e 40 anos depois não pensa em parar: faz helicópteros, animais, brinquedos, carros, cenas completas de sua infância e peças bem-humoradas que pregam peças em seus espectadores. Hoje aposentado, o artesão vende suas criações na feira em Bom Despacho. Contou-me que as pessoas perguntam se ele já foi preso, pois sua paciência para a confecção de peças é grandiosa. A geringonça da foto me chamou a atenção de longe e, segundo Sr. Paulo, serve para armazenar cartas de baralho e arbitrar o jogo. Ficou vários minutos me explicando e eu não entendi nada, mas concordei com a cabeça. Já Sr. Paulo arregalou os olhos e ficou feliz que só vendo!

 

Acima, Espedito Seleiro

5. ESPEDITO SELEIRO
Essa foto tem muita história! Pra começo de conversa, é uma honra poder visitar o Espedito Seleiro em Nova Olinda, no interior do Ceará. Ele, que passou a vida fazendo roupa para vaqueiros na região do Cariri, viu seu trabalho ganhar destaque nas feiras ao ampliar seu leque de produtos: bolsas, baús, cadeiras, móveis, diferentes calçados, acessórios e mais, todos trazendo as cores que capta no sertão. Segundo ele, sua imaginação funciona bem por volta das 4h da manhã, então acorda cedinho para trabalhar. Quando digo que a foto tem história é por conta da cadeira onde ele aparece sentado: um presente que meus avós ganharam de casamento. Em uma das visitas ao seu ateliê, trouxe o móvel para que ele fizesse algo bem bonito com ela. A cadeira se faz presente em todas as memórias que tenho da infância na casa deles. Ela era sempre parte da cozinha, onde a família se reunia para esperar a comida da minha avó Carmem. Não ficou linda demais?

 

 

Peça de Autu Waurá

6. AUTU WAURÁ
No Parque Indígena do Xingu, na região nordeste do Estado do Mato Grosso, Autu (1982), da etnia Waurá (autodenominação Waujá), é a única pajé de sua aldeia. Tida como conselheira, curandeira e intermediária espiritual, Autu aprendeu a trabalhar o barro aos 5 anos de idade ao observar sua mãe modelar a matéria-prima. De grandes a minúsculas proporções, a cerâmica Waurá é patrimônio cultural brasileiro caracterizado pelo alto nível de elaboração realizado pelos habitantes da margem direita do baixo Rio Batovi. Inspirada pelo Kamalu Hai, visto no sonho do pajé e celebrado como “o dono do barro” que proporciona os saberes e auxilia o feitio da tradição, Autu cria peças dos rituais e cotidiano da etnia, sempre revestidas com elaboradas pinturas. Na foto, a maior representação do Atuxuá, importante figura para a etnia e responsável pela recuperação dos enfermos por meio do ritual de coleta e oferta de alimentos, que eu já vi. Os grafismos fazem referência a uma série de interpretações, como jiboia, peixe e arranhadeira.

 

Peça de Mestre Veio

7. VEIO
A expressividade e a potência artística do trabalho de Cícero Alves dos Santos (1947), o Veio, lhe renderam espaço entre as principais coleções de arte do mundo. Seu trabalho se propõe a dar vida à madeira morta, criando personagens com estética e temática contemporâneas. Uma de suas categorias de trabalho é produzida a partir do que chama de “troncos fechados”, quando sua matéria-prima é encontrada pronta em formatos sugestivos, aguardando cores vibrantes que traduzam a imaginação do artista. Suas obras alcançaram galerias, colecionadores e museus nacionais e internacionais. Visage é o título da obra que arrebatou o meu coração em uma das visitas que fiz ao seu ateliê no interior do Sergipe: “é uma espécie de fantasma, uma aparição enorme que amedronta e, mesmo assim, você tem de conviver com ela”, ele me contou. Incrível!

 

Acima, Jadir João

8. JADIR JOÃO EGÍDIO
Abandonado quando ainda pequeno pelo pai, Jadir João Egídio (1933) já teve todas as profissões que você pode imaginar – todas para sobreviver. Ao sair da adolescência, foi tomado pela depressão e encontrou na arte uma saída para ficar bem. E pegou jeito para coisa. Conterrâneo de Geraldo Teles de Oliveira (1913-1990), o GTO, Jadir foi estimulado pelo mestre e, em pouco tempo, já era destaque. Hoje, mais de 40 anos depois, o mineiro figura entre os principais artistas do Estado e é reconhecido por críticos como um dos principais expoentes do País. Seu trabalho mostra um domínio sobre a madeira que a esculpe de forma a transmitir suas crenças religiosas e convívios sociais. Como é de se esperar, perdeu a conta de quantas obras fez: santos, animais, santas ceias, celebrações. Se já é excelente no trabalho, posso afirmar que é ainda melhor como pessoa. Além de sempre me receber muito bem, faz questão de me incluir no almoço de domingo e passear pela cidade. Tá vendo o chapéu que aparece na foto? Esculpido por ele com muito primor. Bravo, Seu Jadir!

 

Tela de Nilda Neves

9. NILDA NEVES
Nilda Neves (1961) é natural do sertão de Botuporã (BA). Bisneta de tupis-guaranis, estudou contabilidade e foi professora de matemática e comerciante, entre outras profissões. Suas telas são carregadas de temáticas referentes à vida no sertão, retratando tempos e costumes: cangaceiros, retirantes, atividades manuais, animais, paisagens, comidas, profissões, vínculos afetivos, conflitos e folclore. Lançou mão de pinceladas arrastadas e secas, que preenchem a tela e dão origem a texturas e padrões. O bom humor, uma das características mais marcantes no trabalho de Nilda, divide espaço com lamentos, introspecções, solitudes e vazios.

 

Peça de Noemisa Batista

10. NOEMISA BATISTA DOS SANTOS
Filha de Joana Batista, importante ceramista do Vale do Jequitinhonha (MG), Noemisa Batista dos Santos (1946) aprendeu com a mãe a manipular o barro. Inicialmente produzindo utensílios, como potes, moringas, panelas e botijas, evoluiu espontaneamente para cenas de seu cotidiano, como o caçador, a biscoiteira, o forró, inúmeros bichos e costumes da zona rural. Anos depois, seu cuidadoso projeto artístico se dedicaria a modelar imagens que representassem os próprios sonhos relacionados ao casamento e à maternidade. Elementos como brincos, compridos cabelos lisos e relógios são usados para transmitir certa vaidade idealizada, usando as tonalidades naturais do barro, como o tauá e a tabatinga, para dar cor e ressaltar detalhes. Ao longo dos últimos 10 anos, comecei a colecionar suas peças que fui encontrando nas casas de colecionadores e lojas em diversos estados. Ressalto a primeira delas, pra lá de especial: a ceramista, uma espécie de autorretrato junto ao ofício de modelagem do barro. Um primor!

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