Nos últimos tempos, tintas e pincéis deram lugar a papel, tesoura e cola. Com os novos materiais, a artista plástica paulista Habuba Farah segue criando, em uma investigação constante de linhas e cores.
POR ROBERTO PALAZZI
Não foi nos arabescos de sua ancestralidade árabe-libanesa, mas nos tecidos vendidos na loja de uma de suas irmãs, Naly, e do marido que Habuba Farah encontrou a origem de sua poética visual. Na época, ela havia se mudado para Osvaldo Cruz, SP, onde já vivia a irmã, para dar aulas no colégio estadual – professora formada no antigo curso Normal, com especialização em geografia, desenho geométrico e economia doméstica, e aprovada em concurso em oitavo lugar.
As estampas dos tecidos, com suas linhas, cores, espacialidades e texturas, despertaram na jovem Habuba a inspiração para sua futura obra. Uma arte pictórica que, num primeiro momento, pode se juntar ao universo dos concretistas paulistas, mas que traz em seu bojo o lirismo-onírico, a pura sensibilidade de interpretar o existencial. Ou, como a própria artista gosta de dizer, arte que muitas vezes é um simples diálogo com o presente, como se fosse uma crônica pictórica geometrizada.
A iniciação nas belas artes veio antes do maravilhamento provocado pelas estampas têxteis. Aconteceu quando a menina – caçula de cinco irmãos e nascida em março de 1931 em Getulina, no centro-oeste paulista – foi apresentada ao desenho e à pintura nas aulas das freiras italianas Ida e Angela, no internato católico na vizinha Lins. Ali Habuba viveu e estudou a partir dos 10 anos, depois de perder a mãe, Maria Ichaia Gattaz. Também foi graças ao incentivo das religiosas que a jovem buscou sua especialização artística em sistemáticos ensinamentos teóricos e práticos.
Habuba Farah
é uma carinhosa
matriarca com uma
alegria contagiante
e uma artista plástica
que não abre
mão de seu ofício
Ao lado, Sem Título, 1974 Assinada e datada
Recorte sobre papel 31 x 22 cm.
EM SÃO PAULO, ARTE E MATERNIDADE
A dedicação às artes plásticas tornou-se integral em 1958, quando Habuba trocou o interior pela capital paulista. Mudou-se com o pai, Elias Farah, para morar na Vila Mariana, na casa de uma irmã, Getulina. Os dias da moça dividiam-se entre pesquisas na Biblioteca Mário de Andrade, visitas a museus e eventos culturais e aulas, ora na Associação Paulista de Belas Artes (APBA), ora com artistas renomados, como Mario Zanini – pintor, ceramista e decorador – e Samson Flexor, pintor e desenhista moldavo, pioneiro do abstracionismo no Brasil. Com este último, Habuba direcionou seus estudos para uma investigação sobre as variações cromáticas do chamado cinza neutro ou, em outras palavras, sobre a soma de cores complementares que resultam em cinzas coloridos. A pesquisa acabou nomeada como Os Neutros da Teoria da Cor (1958-1961).
Estabelecida em São Paulo, Habuba passou a realizar pinturas murais em ambientes residenciais e institucionais, chegando a decorar o quarto que hospedaria o jogador Pelé em Campos do Jordão, em 1962, durante uma viagem da seleção brasileira de futebol. O técnico do time, porém, não permitiu que o atleta se separasse da equipe – mesmo assim, Pelé fez questão conhecer a obra e a artista.
Os anos 1960 foram prolíficos, com a produção de um número significativo de obras por parte da artista, que manteve um ateliê na Rua Augusta entre 1963 e 1965. Ali, além de pintar e pesquisar, ela ministrava aulas.
A vida deu uma nova guinada em 1964, quando Habuba se casou com o imigrante italia no Biagio Riccetti (falecido em 2015). Dois anos depois, nasceu a primogênita do casal, Teresa, e, em 1969, o caçula, Enzo. O tempo, que até pouco antes era reservado exclusivamente à carreira, passou a ser repartido com a rotina familiar, o que levou ao fechamento do ateliê.
No entanto, a artista continuou trabalhado e ensinando, ainda que moderadamente. Teresa lembra que, durante sua infância, ela e o irmão iam passear com o pai nos fins de semana, dando à mãe horas preciosas para estudar, pintar e desenhar.
Habuba tanto conseguiu conciliar as esferas pessoal e profissional que, desde a década de 1970, é membro de comitês internacionais de arte e jurada em vários salões de artes plásticas.
Entre os anos 1970 e 1980, participou de salões e mostras no Brasil, como 7ª Bienal Internacional Artes de São Paulo, mas foi fora do País que angariou mais sucesso, com exposições no Chile, Reino Unido, Japão, Argentina, Cuba, Espanha, Estados Unidos, França, Itália, Mônaco e Emirados Árabes Unidos.
Ao lado, Habuba Farah Riccetti, 1931 Crepúsculo Matutino, 1973 Óleo sobre tela 120 x 60 cm Coleção Roderic Steinkamp, EUA.
LEGADO PRESENTE EM MUSEUS E COLEÇÕES PARTICULARES
‘Habuba’ vem do árabe habib e significa ‘querida’, ‘amada’, ‘carinhosa’. ‘Farah’, por sua vez, expressa ‘alegria’, ‘aquela que transmite alegria’. Aos 93 anos, lúcida e ativa, Habuba Farah é uma carinhosa matriarca com uma alegria contagiante e uma artista plástica que não abre mão de seu ofício.
Fisicamente impossibilitada de trabalhar com tintas e pincéis, ela direcionou sua poética para a colagem. A alguns pode parecer uma arte menor, porém a artista a realiza com base nos mesmos princípios de toda a sua prática: “Estou utilizando de minhas hipóteses e tese sobre a linha, a cor e os neutros. Já que a idade me limitou o uso da tinta, eu uso a tesoura, o papel colorido e a cola, criando sempre”.
Apesar de obras de Habuba Farah integrarem coleções particulares e o acervo de prestigiosas instituições nacionais e internacionais, como o MASP, a Barjeel Art Foundation e o Guggeheim Museum, o trabalho de pesquisa e até mesmo a produção da artista poderiam ser eclipsados – seja pela crítica, seja pelo mercado, como aconteceu com outras mulheres brasileiras dos últimos 70 anos – não fosse uma iniciativa de Marcelo Pallotta. Pesquisador, marchand e proprietário da Galeria MaPa, ele vem resgatando artistas nacionais proeminentes entre as décadas de 1940 e 1980. Além de recolocá-los no mercado e incluí-los em feiras e exposições, Pallotta edita catálogos e livros como forma de preservar e divulgar esses nomes.
Abaixo, degradê nas formas geométricas reflete luz e sombra.
Da cooperação entre Pallotta e o galerista Thiago Gomide, aconteceu no fim de 2023 uma das mais belas retrospectivas do trabalho de Habuba Farah, com direito a um livro-catálogo que reuniu suas obras mais significativas e sua tese sobre os neutros da cor.
O principal legado dessa artista para a história das artes plásticas no Brasil e no mundo é, sem dúvida, a geometria-lírica, como denominou o crítico Mario Schemberg. Mas há outra faceta, ofuscada: o desenho de modelo vivo, sobretudo os belos nus femininos. Deles existe uma infinidade de estudos, pois, como Habuba aprendeu com suas mestras italianas do curso Normal, o segredo para fazer aflorar o eu-poético-lírico-estético está em persistir no fazer artístico pictórico.