Onde a música é o personagem principal, o figurino conta a história tanto quanto as palavras que saem da boca dos personagens. É o que mostra a montagem sobre o grupo Los Hermanos.
POR SIMONE INTRATOR
O desafio estava dado: criar em menos de dois meses o figurino de Los Hermanos, musical pré-fabricado, dirigido por Michel Melamed. E, como gente que faz, a designer Luiza Marcier fez: entregou mais de 100 vestimentas para atores e músicos, peças que exigiram um olho na praticidade e outro na criatividade, já que as trocas seriam feitas às pressas nas coxias. Não é à toa que, ao dar forma, cor, volume e textura à história da banda de Marcelo Camelo, Rodrigo Amarante, Bruno Medina e Rodrigo Barba, a artista levou ao palco um verdadeiro desfile. Feito pelo qual Luiza se consagrou como gente que vence, arrebatando o 34o Prêmio Shell de Teatro na categoria Melhor Figurino. O sucesso não parou por aí e, na mesma edição, o Júri Rio a condecorou igualmente por Restos na escuridão: uma engenharia reversa, de Fábio Ferreira e Carolina Virgüez, um monólogo para o qual a figurinista desenhou apenas três roupas.
O cuidado com os detalhes e a pesquisa são rotinas do processo criativo de Luiza, que é professora do Departamento de Artes e Design da PUC-Rio e fundadora da loja À Colecionadora. Tudo começa pelas conversas com o diretor e a equipe, e pelas decisões sobre o fio condutor dos figurinos e os efeitos que se quer causar no palco.
No musical do Los Hermanos, Luiza e Melamed, parceiros no trabalho há mais de 20 anos, trocaram ideias o tempo todo para construir cada imagem.
“O Michel [Melamed] é um poeta. Ele criou uma engrenagem de cenas, fez do espetáculo uma partitura. E eu deveria vestir essas cenas. Mas não era só criar um personagem. Eu precisava fazer do teatro um quadro – um quadro vivo. Fazer com que aquele poema ganhasse corpo… O que estava escrito precisava acontecer cenicamente. E ainda tinha a questão de fazer 100 figurinos em dois meses. Então foi um trabalho em que usei muitos recursos”, explica Luiza.
“Não era só criar um personagem. Eu precisava fazer com que aquele poema ganhasse corpo… O que estava escrito precisava acontecer cenicamente” LUIZA MARCIER
As cenas aconteciam no tablado e em quatro cubos, e para cada uma houve um conceito. Num dos cubos, para ilustrar a música Flor, sobre um amor não correspondido, Melamed queria remeter a Cyrano de Bergerac. “Então desenhamos e fizemos um figurino de época, com chapéu, pluma, capa, espada, o nariz do Cyrano”, conta a figurinista. Para Roxane – personagem da obra de Edmond Rostand por quem Cyrano seria apaixonado –, foi desenvolvido um vestido com espartilho. “Como variei muito a forma, mantive essa cena em preto e branco, para que o público visualizasse o desenho da roupa. Essa é também a marca do meu trabalho: levar o desenho da roupa para a cena”, continua Luiza. Para ela, é fundamental que, no palco, os trajes colaborem para o trabalho de todos, do ator ao iluminador. “O preto e o branco funcionam bem para quem ilumina porque o branco absorve qualquer luz. Esse foi um dos recursos que usei.”
O elenco com saias brancas dança saudando o cubo branco na música Samba a Dois. Na página ao lado, personagens trazem partes dos figurinos para compor em cena uma personagem múltipla
Outra estratégia foi investir no tafetá, tecido luminoso, que brilha – mas não como o cetim – e não é mole demais. “Ele é meio cartilagem, quase tem vida própria: a pessoa faz um movimento e ele arma. E há um delay [atraso] para desarmar. Tem um vestido vermelho, lindo, com um godê de 8 metros de saia: a atriz levanta e o tecido demora para descer, então o figurino ajuda a desenhar o gesto. É uma relação de peso, leveza, movimento. A gente queria que as roupas falassem, como poemas visuais.
O Michel [Melamed] tem a aposta de ir no máximo dos efeitos visuais”, detalha Luiza. Uma das cenas mais emblemáticas criadas por ela e pela equipe – integrada pela assistente Ana Luiza Lima e pelas estagiárias Carol Cravo e Elena Diaz, estudantes da PUC-Rio – foi a do funeral. A ideia era compor um desfile de moda, “soltar a mão”, e fazer uma cena hiper-real. “Ninguém imaginaria abrir o segundo ato com um enterro. Foi muito livre e bonito. Alguns chapéus foram desenhados pelo Denis Linhares, outros por mim. Nessa cena, pude imprimir mais a minha assinatura. Para mim, é muito mais fácil acertar em vários vestidos do que num só. Minha lógica é a da coleção. Foram metros e metros de tafetá preto”, lembra.
Também marcou o figurino de O Vento, representando um show do Los Hermanos: os atores que interpretavam o público estavam de calça jeans – compradas em brechó, para ficar verossímil, com cara de roupa usada –, e as camisetas estampavam Edgard Allan Poe, Madonna, o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol… “Isso são camadas, camadas que vão dando um nível de leitura diferente, outro colorido”, diz Luiza, chamando a atenção, também, para Cara Estranho, com personagens num cantinho, vestindo um casacão amarelo e, por baixo, uma roupa de lycra exclusiva.
No fim do espetáculo, uma personagem surgia e era caracterizada no palco com itens dos diversos figurinos: um pedaço do vestido vermelho, o chapéu do Cyrano, uma calça de bombeiro, uma roupa de mendigo feita de cobertor. “Ela falava um texto lindo sobre o fazer do ator, a construção, e isso aparecia também na roupa. Todos os atores vestiam essa personagem em cena. É uma roupa simbólica, sobre a criação”, orgulha-se Luiza, que procura as palavras certas para definir sua assinatura como artista: “Meu trabalho é sobre criar um espaço para o ator. Vai além da caracterização.
É uma pintura em movimento. Tem muita intuição em cada escolha, mas tem também o ir à loja, sentir o tecido… Muitas escolhas são feitas nessa hora. É isso que transmito para meus alunos. O tecido não é só visual, é têxtil, é tátil e tem som!”.