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NO TERRITÓRIO DOS INDÍGENAS AZUIS

Cranio começou a desenhar com apenas 2 anos de idade e, inspirado nas histórias em quadrinhos, criou personagens que cativam inclusive pelo bom humor.

POR ANGELA VILLARRUBIA

O jovem estudante Fábio de Oliveira Parnaíba era ótimo em matemática, o que lhe rendeu o apelido de Cranio (assim mesmo, sem acento), que carrega até hoje como reconhecido grafiteiro, autor de memoráveis imagens de indígenas azuis. O artista começou a atuar na própria escola, marcando seu nome nas carteiras e pichando a parede da sala, para logo sair às ruas. Ele conta que se moveu por cerca de uma década de forma praticamente anônima, até que foi convidado para expor em uma galeria em Londres, o que impulsou sua carreira.

Cranio concedeu esta entrevista, via Skype, de forma inusitada, já que estava em uma via pública, justamente preparando um muro para grafitar, ao lado do amigo e street artist Rafael Bônus. As parcerias são comuns entre os grafiteiros, que muitas vezes entrelaçam desenhos e desfrutam da companhia e da colaboração dos colegas de spray. Adepto do freestyle, Cranio não tinha nenhum esboço ou ideia do que iriam pintar, deixando a arte fluir no momento.

CRÍTICA SOCIAL ESPIRITUOSA

Impossível ficar indiferente diante de seus desenhos, embasados nos já mencionados indígenas azuis que, solitários ou em grupo, são retratados em uma miríade de situações, das cotidianas às extraordinárias. A concepção dos personagens do grafiteiro surgiu a partir da procura por um componente que refletisse a cultura brasileira. Cranio acredita haver um paralelo entre a Amazônia e a “selva de pedra”, entre os povos originários e os habitantes urbanos. “Todos os dias eles saem de casa e de seu conforto para ir à luta, à selva, procurar seu sustento”, explana.

Temas como desigualdade social e consumismo exacerbado são frequentes em sua obra. Tanto que é possível ver seus protagonistas com celular na mão, carregando bolsas de grife ou sacolas de fast food. Essas questões, porém, são desenvolvidas de forma espirituosa, uma característica de suas criações. Embora o bom humor predomine, há algumas exceções, como no caso dos personagens deitados, que nascem alicerçados em uma tragédia ou na triste realidade da população em situação de rua. “Esse é um dos protestos que faço a partir do assassinato, em Brasília, do indígena que foi queimado vivo”, explica. Cranio se refere ao lamentável episódio, em 20 de abril de 1997, no qual cinco jovens de classe alta jogaram combustível e atearam fogo em Galdino Jesus dos Santos, da etnia pataxó hã-hã-hãe, enquanto este dormia em um ponto de ônibus. Galdino, que estava na capital pelo Dia dos Povos Indígenas (então Dia do Índio) e para tratar da demarcação de terras, havia sido impedido de entrar na pensão onde se hospedava em função do horário avançado. 

“GOSTO DE TIRAR UM SARRO DE SITUAÇÕES QUE SÃO MEIO SARCÁSTICAS. FAZ PARTE DA CULTURA DO BRASILEIRO RIR DA PRÓPRIA DESGRAÇA”



Indagado sobre o tom que tinge seus protagonistas, Cranio explica que o azul tem fácil associação com paletas frias ou quentes. “Pensando na mistura cromática, cheguei à conclusão de que era legal para contrastar com o cinza de São Paulo e brincar com o lance colorido do meu trabalho. Dentro da pesquisa realizada, absorvi os conceitos da tonalidade em várias outras culturas.”

“O azul remete à sobrevivência, a um dia belo, algo que desperta a vontade de viver. Remete a Deus, ao bem-estar da sociedade, à paz que às vezes as religiões pregam”, enumera. Vale lembrar que outros street artists também têm na cor de suas figuras uma marca registrada, como o amarelo utilizado por Gustavo e Otávio Pandolfo, OSGEMEOS, ou a palidez das pessoas retratadas por Walter Nomura, o Tinho, entre outros.

Cranio traçou seu primeiro indígena em um muro na primeira década deste milênio. “Não durou nada, porque São Paulo estava sendo massacrada pela ‘cidade cinza’. Você pintava hoje e já não estava lá amanhã. Não tenho nem fotografia”, confessa. Ele faz referência à Lei Cidade Limpa, do então prefeito Gilberto Kassab, que possibilitava à administração pública, entre outras ações, cobrir com tinta cinza pichações e grafites, indistintamente. 

“Desenvolvi uma linguagem própria, com os personagens indígenas, e foi bem natural, ao começar a entender o que seria uma obra de arte, uma coisa mais complexa, simplificar as técnicas – com pensamento, questionamento, protesto. A arte tem esse papel. O grafite é um grito de existência. Especialmente em uma época em que era difícil você existir; esse movimento ilegal teve aceitação como movimento artístico”, conclui o criativo.

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