Originada da expansão marítima portuguesa, a cidade dos deuses afro-brasileiros é o ponto de encontro de longas rotas transatlânticas. Em suas ruas, confluem culturas, cores e sabores vindos de terras distantes: África, Europa e até Ásia
SALVADOR NASCEU NUM PROMONTÓRIO, numa falésia, aos moldes de Lisboa, tendo a Cidade Alta e a Cidade Baixa. Do mirante na Praça Tomé de Sousa, vislumbram-se a Baía de Todos-os-Santos, o Forte de São Marcelo, o Mercado Modelo e o Elevador Lacerda – considerado o primeiro do gênero em escala urbana do mundo.
Capela de Nossa Senhora da Conceição da Quinta do Unhão, séc. 18, atual Museu de Arte Moderna da Bahia
Com uma noção de urbanismo mais próxima da Idade Média do que do Renascimento, os colonizadores portugueses descartaram um sistema de arruamento racional. E assim a capital baiana ramificou-se na irregularidade de ruas estreitas e casarios apertados, apinhados nas ladeiras, em sobrados verticalizados, de terrenos compridos alinhados aos largos das igrejas, e estas, por sua vez, assentadas nos topos dos morros.
Essa urbanização resultou no Centro Histórico que conhecemos hoje. Bastante degradado, ele já passou por algumas tentativas de requalificação. A mais famosa talvez seja a elaborada pela arquiteta ítalo- brasileira Lina Bo Bardi (1914-1992) no final dos anos 1980. Seu modelo ambicioso previa ocupar 42 quarteirões com moradias sociais e comércio, mantendo no local quem já vivia ali. E também haveria espaços culturais. O projeto iniciou pela Ladeira da Misericórdia, mas as obras foram abandonadas antes mesmo de o restauro do casario ser concluído, juntando mais escombros ao patrimônio histórico da cidade. Agora, em 2024, a prefeitura e a Associação Cultural Pivô prometem retomar o projeto de Lina (veja mais sobre o legado da arquiteta ao final deste texto).
Onde o Brasil é mais indiano
A ancestralidade africana é marca inegável da população de Salvador, assim como a portuguesa e a indígena. Mas a cultura soteropolitana se originou de uma pluralidade ainda maior. A chamada Carreira das Índias, rota marítima entre Lisboa e Goa – Portugal e Índia –, usada de 1500 até o século 19 e que esporadicamente tocava o porto de Salvador, influenciou decisivamente os hábitos, as artes, os ofícios e a arquitetura colonial da outrora primeira capital da América Portuguesa. Em 12 de março de 1588, tecelões de algodão, da Índia, aqui desembarcaram para ensinar a arte da tecelagem. Desenvolveu-se o comércio de sementes, artesanatos e imagens de marfim. Frutas indianas, como jaca, manga e carambola, adentraram o espaço baiano, enquanto o caju e o abacaxi do Brasil se inseriram na Índia.
Restauro do Solar do Unhão (1962-63) e sua icônica escada helicoidal, projeto de Lina Bo Bardi. O conjunto é precursor no quesito conservação de edifícios industriais e sua adaptação a novos usos no Brasil
Estéticas africanas e asiáticas foram assimiladas com originalidade na cultura erudita e popular da Bahia e, aos poucos, reinterpretadas no imaginário dos artistas coloniais e contemporâneos. Nas igrejas soteropolitanas, as pétalas do lótus, emprestado do budismo, foram reproduzidas em peanhas de imagens barrocas, evocando a candura. Flores de açafrão, símbolo de pureza, sabedoria e eternidade, ganharam os frontões de oratórios, enquanto flores de malabar e crisântemo passaram a decorar as vestes folheadas a ouro dos santos barrocos. A moda das chinesices e dos africanismos penetrou nos espaços laicos e sagrados em fusão com as tradições cristãs, do candomblé e da umbanda. Uma beleza plástica de soluções miscigenadas em toda sorte de objetos e simbologias de fé: terracotas, gessos, barbotinas, talhas, terços, orixás, orações, santos, caboclos, budas, relicários, alguidares, figas, fitas, búzios, tecidos, penachos, bandeiras, pinturas, bíblias, ex-votos, divinos etc.
O surpreendente encontro entre Bahia e Ásia, sobretudo interligando-se à Ilha de Velha Goa, foi além da religião e da culinária, amplificando-se na decoração indo-portuguesa dos sobrados coloniais mais abastados do Pelourinho – alguns deles contendo beirais de telhado finalizados por unhas chinesas –, nas cúpulas das igrejas, coroadas por torres orientalizadas, e em campanários com beirais e coretos que nos lembram pagodes.
Fusão que inspira as artes
Embora abalada pela transferência da capital do Brasil para o Rio de Janeiro em 1763, a cidade manteve a importância e o status de metrópole regional do Nordeste, consagrando-se como um dos maiores polos de cultura do País. Na fusão de elementos transatlânticos, a cultura baiana gerou uma diversidade de costumes, gastronomias, fármacos, peças decorativas, pinturas e linhas arquitetônicas que denotam elegância e conexão espiritual com terras longínquas.
Da ascensão à queda, decadência, redescoberta e revitalização, o bairro do Pelourinho, no distrito histórico da capital, testemunhou as mazelas e conquistas da sociedade brasileira. E sobreviveu ao tempo, com seu casario coeso, multicolorido e tropical, com museus e igrejas admiráveis, um espaço de valorização da música e das tradições afro-brasileiras, elevado à dignidade de patrimônio cultural da humanidade, num conjunto tombado pela UNESCO em 1985.
Essa região abraçou incontáveis artistas, estrangeiros e filhos da terra, vanguardistas, celebrando a luminosidade dos trópicos, o poder de Iemanjá, Senhora do Mar, Stella Maris, Conceição da Praia, no imaginário de Jorge Amado e Zélia Gaai, ao som de Caymmi, nas cores de Carybé e Pancei, na construção visual de Genaro de Carvalho, Mário Cravo Júnior, ou na ancestralidade de Mestre Didi, Rubem Valentim e Agnaldo Manoel dos Santos.
As digitais de Lina Bo Bardi
A herança de Lina Bo Bardi em Salvador – onde trabalhou de 1958 a 1963 e novamente na década de 1980 – é notória. Entre os exemplos, temos o projeto para o Centro Histórico, com intervenções na Ladeira da Misericórdia, que incluíram a construção do icônico restaurante Coatí (1987), hoje em ruínas. Marcante também foi o restauro, no Pelourinho, de imóveis históricos em estado de degradação, como a Casa do Benin, na Baixa do Sapateiro, inaugurada em 1988 – o casario secular de linhas externas salvaguardadas e interiores atualizados abriga uma coleção de objetos do Golfo do Benin, ponto de partida da maioria dos africanos que povoou o Recôncavo. E há ainda o Museu de Arte Moderna da Bahia, no Solar do Unhão (1959), prédio que teve sua identidade preservada, porém inserida em uma arquitetura moderna e inovadora, e o projeto para o Teatro Gregório de Maos (1986), que no século 19 abrigara o antigo Cassino Tabaris.
Largo do Pelourinho e antigo Solar do Unhão, complexo agroindustrial composto por solar, capela, cais, aqueduto e senzala
Lina Bo Bardi trouxe um conteúdo sintonizado com a explosão da cultura de massa no Brasil, que ia além da arte, olhando para o design, o mercado, a indústria, a televisão, a arquitetura, a moda, a publicidade e a fotografia. A combinação entre o antigo e o novo, entre objetos massificados, vintage, kitsch e mobiliário tradicional, talhas, prataria e imaginária, converteu-se em elemento fundamental na decoração da casa brasileira moderna e contemporânea, sinônimo de bom gosto e resgate de tradições – e fonte de inspiração potencializada. Com um olhar atento ao presente, Lina soube reinterpretar com elegância a herança das diversas culturas e temporalidades que se cruzavam em Salvador.
As mesmas referências que caracterizam essa cidade, desde os tempos coloniais – quando se inicia a globalização das influências artísticas – até os dias atuais, momento de revisarmos a história e descolonizarmos os olhares, podem ser apreciadas nas obras dos artistas contemporâneos homenageados nas páginas a seguir. Assemblages, pluralidade, representatividade, conexão com a fé, crítica, voz, ou simplesmente uma liberdade estética, cromática ou sensorial reverberam em múltiplos sentimentos apresentados por nossos artífices.