De casa em casa

No Rio de Janeiro, uma leva de restaurantes com ótima gastronomia ocupa sobrados e casarões, apostando numa decoração que encanta os olhos e traz a sensação de lar.

POR LÚCIA GUVOVITZ

Ambiente com jeito de casa, comida boa e cheia de memória afetiva: esses são os ingredientes de um programa delicioso e uma descrição bastante fiel de alguns dos melhores restaurantes em funcionamento hoje no Rio de Janeiro. Além de conquistar moradores e turistas, esses estabelecimentos ajudam a preservar casas que fazem parte da história dos bairros onde estão localizadas, construções queridas pela vizinhança e fundamentais para que as grandes cidades conservem áreas de respiro e lembranças de outros tempos. Em todos eles, apesar de a comida ser ótima, fica difícil prestar atenção apenas nos pratos. Logo seu interesse será atraído pelo mobiliário, pelos quadros, objetos e revestimentos do entorno. Quando esse momento chegar, deixe-se levar e aproveite a experiência sensorial completa.

No italiano Babbo Osteria, em Ipanema, o chef Elia Schramm combina o resgate culinário ao arquitetônico. Pratos inspirados em receitas de família (babbo é um jeito carinhoso de dizer “pai”) são servidos num ambiente aconchegante, que, de tão caprichado, foi parar na lista de restaurantes mais bonitos do mundo em 2022, segundo a premiação Prix Versailles. Responsáveis pela reforma da casa, as arquitetas Michelle Jagger e Natalia Schmidt, do escritório MZNO Arquitetura, contam que o sobrado estava descaracterizado por intervenções anteriores e o principal preceito do projeto foi recuperar as feições originais. “Tiramos acréscimos desnecessários e restauramos elementos importantes, como a escada e o piso de tábuas do andar de cima”, diz.

Michelle. Tijolos de uma parede desmontada compuseram o piso da entrada, enquanto o salão térreo recebeu ladrilho hidráulico. Quem trouxe a dupla para o projeto foi a diretora de arte Julia Pina, que assina a decoração, e algumas decisões foram tomadas em conjunto, como o garimpo de móveis em antiquários e o desenho dos fluxos de circulação. O lighting designer Alessandro Boschini cuidou da iluminação. Pelas paredes, é possível ver heranças familiares de Elia incorporadas ao décor. “Desde o início, ele nos pediu um clima afetuoso”, explica Natalia.

Um casarão tombado no Botafogo abriga o vegetariano Brota. Quando os arquitetos Thiago Tavares e João Duayer, da Tadu Arquitetura, chegaram para criar os interiores do restaurante, o imóvel já havia passado por um cuidadoso restauro, encomendado por inquilinos anteriores. Ali estavam as esquadrias pintadas de vermelho e os tijolos aparentes. Diante do grande salão vazio, a dupla tratou de alinhar o projeto aos desejos da chef Renata Ciasca, parceira de outros trabalhos. “Para ela, era importante ter o bar logo na entrada, pois os drinques são um ponto forte do cardápio”, afirma Thiago. O balcão foi delimitado com tijolos maciços de 9 cm x 20 cm, referência aos materiais originais da casa. No mobiliário, a madeira predomina, acompanhando o tom do piso de tábuas. A extensa mesa central atende a outra solicitação da chef: um espaço no qual os grupos de clientes pudessem se sentar ao lado de desconhecidos, assim como diversos pratos do cardápio são para compartilhar. “Ela tem esse perfil agregador. Buscamos trabalhar com formas orgânicas e cores suaves e naturais para garantir uma atmosfera feminina ao ambiente”, completa Thiago.

O chef Nello Garaventa e a designer Lara Atamian são donos de dois restaurantes italianos, o Grado, no Jardim Botânico, e o Padella Trattoria, em Botafogo, ambos instalados
em casas dos anos 1940. Inaugurado primeiro, em 2017, o Grado passou por uma reforma orquestrada pela própria Lara, na qual os cômodos compartimentados foram abertos para dar origem aos salões. “Tive o desafio de coordenar as necessidades de um restaurante com a vontade de preservar ao máximo as características originais da construção”, conta. A massa grossa que cobria a fachada, assim que removida, revelou a textura do tipo “sopapo”, agora totalmente à vista. “A casa foi contando suas histórias e guiando os passos da obra”, diz. Na decoração, destacam-se relíquias de família, como o cartaz de uma ópera de 1915 estrelada pelo bisavô homônimo de Nello, cantor lírico. A estante de madeira através da qual se avista a cozinha é réplica de um móvel que Lara herdou da avó.

Aberto em 2022, o Padella se beneficiou com a aplicação de experiências aprendidas com
a operação e a obra do Grado. Lara pesquisou bastante até encontrar o casarão em Botafogo e, quando a reforma começou, já contava com acervo de móveis e objetos comprados em antiquários, leilões e mercados de pulgas, no Brasil e no exterior, para compor a decoração. Dessa vez, ela cuidou da concepção do projeto e teve o auxílio do arquiteto Felipe Maia, do escritório Maia Romeiro Arquitetura. “O imóvel havia sido ocupado por restaurantes anteriormente e acreditei que faríamos apenas uma adaptação rápida. Mas a obra se estendeu para que pudesse ser feita a cobertura de vidro na área externa”, explica a proprietária. O recurso permitiu ampliar o espaço disponível para mesas e cadeiras, e valorizou a sequência de janelões na lateral da casa. No décor, além das peças antigas, chama a atenção a marcenaria num tom escuro de verde, que expõe livros e objetos, organiza as taças e acomoda a adega. “Considero que nossos restaurantes não têm só jeito de casa. Eles são efetivamente as nossas casas e recebem mais atenção do que o local onde Nello e eu moramos”, afirma Lara.

O mais longevo restaurante dessa lista é o Zazá Bistrô Tropical, que ocupa a mesma esquina de Ipanema há 25 anos. “Fiz questão de me instalar numa casa e esperei um ano e meio até aparecer o imóvel certo”, conta a empresária Zazá Piereck, dona do local. Quem hoje passa por lá pode imaginar que as janelas brancas do sobrado, com apliques de vitral, são originais da construção, mas na verdade elas foram encontradas por Zazá num depósito de materiais de segunda mão, antes da inauguração do bistrô, e substituíram as feias esquadrias de alumínio que havia na fachada. A última grande reforma aconteceu para a reabertura da casa após o período de isolamento social. “Fechamos no início da pandemia, em março de 2020, e só voltamos a funcionar em janeiro de 2021”, explica a empresária. No retorno, o restaurante ganhou interiores mais claros e arejados, mesas na calçada e um balcão de onde é possível almoçar observando o movimento da rua. O Jardim Majorelle, em Marrocos, inspirou o azul da fachada, complementado pelo turquesa da varanda. Da cozinha, comandada pelo chef Arthur Cardoso, saem pratos como atum selado em crosta de limão-siciliano e curry de frango orgânico. “Meu maior prazer é cuidar da experiência que vai além da comida: a decoração, a música, as frases na parede, o abraço”, conta Zazá. “Os clientes dizem que se sentem em casa aqui.”

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