Coreógrafa Lia Rodrigues exibe pelo mundo a potência de sua companhia sediada na Favela da Maré, no Rio.
Por Simone Raitzik | Fotos: Sammi Landweer
No início são fagulhas – cenas e fragmentos do dia a dia, das ruas, de obras de arte ou das páginas de um livro – que disparam o longo e intenso processo criativo da coreógrafa paulista Lia Rodrigues, radicada no Rio. Depois vem a gestação, coletiva, com os bailarinos e a equipe, desenhando um bordado de ideias que vão se avolumando sem roteiro definido e acabam costuradas por Lia, artista das mais renomadas no universo da dança contemporânea – no Brasil e no mundo.
Sua carreira, de mais de dez anos à frente da Escola de Dança Livre da Maré, soma-se a mais de uma década dirigindo o Panorama, um festival que criou em 1992 (e do qual esteve no comando até 2005) e acontece até hoje como uma referência de programação de qualidade e excelência. Como criadora, Lia é pura vanguarda.
Muitos de seus espetáculos não têm som, mas repercutem como um grito agudo num silêncio ensurdecedor. Cada nova coreografia – atualmente está em cartaz com Encantado, em turnê até setembro na Europa, quando volta para temporada no Rio, no galpão onde fica sediada a companhia, na comunidade da Maré – tem relação com o universo em que vivemos, com o que nos aflige e com o que nos move. De uma forma profunda e intensa.
A seguir, você confere o processo de criação de Lia.
&Design: Em geral, você leva de dez meses a um ano para elaborar um novo espetáculo e há um hiato de dois a três anos entre eles, com turnês pelo Brasil e pelo mundo. Como funciona essa rotina?
Lia Rodrigues: Nunca paro de pensar sobre o trabalho, sobre o que acontece no mundo e sobre a realidade da sede da minha companhia, que fica na Favela da Maré. Isso é muito marcante em todo o meu processo criativo. O ponto de partida é uma sequela do projeto anterior, e daí começo a montar uma bibliografia com temas que me interessam e falam do que pretendo abordar na montagem. Vou colecionando palavras que me tocam e formo com elas um dossiê. Guardo também imagens que garimpo na internet, cenas cotidianas publicadas na mídia, reproduções de obras de arte que me impactam. E vou apresentando esse material para a companhia e, juntos, tecemos um fio condutor. Com isso, os bailarinos vão propondo movimentos, cenas, e eu vou costurando as ideias. A minha autoria está justamente quando finalizo esse arsenal, desenvolvido em grupo.
&D: Conte como foi especificamente o processo do Encantado, seu espetáculo atual, que fala da crise com o desmantelamento da cultura no Brasil e traz corpos “mágicos”, que dançam como viventes, enrolados em cobertores.
LR: Para esse espetáculo, li muito. De Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior, a Ciclos Selvagens, de Ailton Krenak, passando por O Corpo Encantado das Ruas, de Luiz Antonio Simas, autores que muito me inspiraram. Há um enorme investimento intelectual, um mergulho profundo. Mas a imagem que marcou o início do processo foi a de uma pessoa enrolada em um cobertor, na rua, como um embrulho. Estando sediada no Centro de Artes da Maré, o espaço também contribuiu para dar forma a esses seres “encantados”, uma constelação de vozes muitas vezes invisíveis à sociedade, mas que precisam ser ouvidas, ganhando assim corpo e rosto. Em resumo, Encantado reúne 11 bailarinos e 140 cobertores e repercute um comprometimento com a democratização da arte em um país tão carente de incentivo.