AS PEDRAS FALAM, E DENISE MILAN AS ESCUTA. EM SUAS INSTALAÇÕES, OS MINERAIS NARRAM A EPOPEIA DO MUNDO, ONDE GEOLOGIA E VIDA SE ENTRELAÇAM EM UM MESMO TEMPO CÓSMICO.
POR MARCOS ROSA
As obras de Denise Milan são um convite ao silêncio. Pedem contemplação. A artista retira as pedras de seus espaços rotineiros – das rochas que moldam o solo, do comércio que as fetichiza, das vitrines de lojas de decoração ou de terapias holísticas. Por suas mãos, as pedras ganham outro destino. No espaço expositivo, são organizadas em cenários teatrais, sob iluminação cuidadosamente orquestrada. Um cristal é posicionado em relação ao outro, numa cena mineral que pede reverência ao ser observada. Para Milan, esse rearranjo permite que as pedras encontrem sua voz e comecem a contar sua própria história.
O que emerge dessas narrativas é um drama maior que o humano, mas que o atravessa e o conforma. É a história da criação e da destruição, do acaso que governa a matéria, mostrando-se na constituição do cristal. Na cena montada por Milan, os detalhes da composição mineral – superfícies translúcidas, reflexivas, densas ou expandidas – são realçados pela luz artificial dirigida, feixes que transformam as pedras em testemunho vivo, em relicários de processos tectônicos e antigos. No palco, sob a iluminação focada, os minerais passam a evocar analogias entre a trajetória individual e a história do planeta. Entre o tempo breve da vida e o ritmo geológico das placas tectônicas. Entre as contrações de um útero e os abalos sísmicos do solo. Conexões que levam o espectador a perceber sua pequenez diante do planeta e dos fenômenos vitais. Mas que também o inserem numa epopeia cósmica.
A maioria das pedras escolhidas por Milan para a exposição “Viagem ao Centro da Terra” evoca formas antropomórficas e imagens de fertilidade. Drusas de ametistas em formato de madonas. Úteros em flor. Cristais pendurados como gotas de chuva, iluminados em tons dourados, remetendo à chuva mitológica que fertilizou Danae. Ali, as pedras narram dramas que aludem ao útero: um espaço que concebe, molda, sangra, gera vida – ou não gera nada. A trama dessa exposição era tecida pela Vênus, que permanece aquém dos feitos públicos, voltada para a dimensão mais carnal e orgânica de reprodução da vida e da matéria.
No papel de tradutora do arcaico e do eterno, Denise Milan se aproxima daqueles que desvendam contextos misteriosos para o público: a arqueóloga, a antropóloga e, por que não, a geóloga? Como arqueóloga, dedicou-se ao estudo dos petróglifos e das cerâmicas marajoaras, que inspiraram a instalação U Ura Muta Uê, localizada no jardim do Espaço Cultural das Onze Janelas, em Belém. Esse conjunto escultórico, alinhado ao Cruzeiro do Sul, também nasceu do diálogo com os tembés, com quem Milan estudou astronomia e cosmologias indígenas.
Em 2018, a artista publicou Linguagem da Pedra, um livro que combina fotografia, montagens e poemas. Nele, esboça um código poético derivado das composições atômicas e das formas dos cristais. Com esse trabalho, ela se afirma como tradutora atenta, capaz de descrever a gramática e o vocabulário dos minerais, revelando as narrativas que a terra sussurra em silêncio. Se seu ofício é criar o espaço e os meios para que as pedras se tornem eloquentes, esse mesmo ofício não dispensa a sensibilidade da artista, que é fruto de sua própria história. Seus avós, originários do Líbano, construíram em São Paulo o famoso Palacete Baal, em estilo mourisco, hoje destruído. Em entrevista a Gabriel Pérez-Barreiro, em 2018, Denise revelou que reencontrou nos cristais a metáfora da geometria que compunha o palácio: as Estrelas do Oriente que adornavam as paredes e, por que não, o prisma que estruturava suas torres? O palacete desfeito foi tema de um romance escrito por sua irmã, que chamou a demolição de “memoricídio” da imigração libanesa no Brasil.
Apesar de Denise Milan ser discreta e avessa a expor sua vida pessoal ou o contexto que possibilita suas obras, é inegável sua busca pela memória de um tempo mítico que apenas as pedras conheceram. Seus cristais, que têm origem no solo brasileiro, contam uma história anterior à existência das fronteiras, pertencendo ao planeta inteiro e a cada indivíduo. Nesse tempo mítico, não há diferenças culturais a serem demolidas ou celebradas, mas um solo comum que conecta todos os indivíduos a um mito universal. Ali, os idiomas são um só, capaz de expressar diretamente o que importa: o drama da matéria em gerar, morrer e submeter-se ao acaso, esse agente de formas, tristezas, deslocamentos e alegrias.
// Marcos Rosa é doutor em História da Arte pela Unicamp, professor, pesquisador e crítico de arte independente




















