Skip to main content

FÉ NA FORMA

Do encontro de quase três décadas com a matéria transformada do papelão reciclado, Domingos Tótora molda uma obra singular, impulsionando a fronteira entre arte e design sem sair do próprio quintal.

POR SILVIA GOMEZ

DO ENCONTRO DE QUASE TRÊS DÉCADAS COM A MATÉRIA TRANSFORMADA DO PAPELÃO RECICLADO, DOMINGOS TÓTORA MOLDA UMA OBRA SINGULAR, IMPULSIONANDO A FRONTEIRA ENTRE ARTE E DESIGN SEM SAIR DO PRÓPRIO QUINTAL, AS MONTANHAS DA SERRA DA MANTIQUEIRA, NO SUL MINEIRO

No início de sua trajetória profissional, às voltas com uma pesquisa de linguagem, Domingos Tótora investigava impressões fotográficas em blocos de parafina, contudo não estava convencido de que seu caminho passava por ali. Foi em uma tarde de 1995, em Maria da Fé, cidade de 14 mil habitantes em Minas Gerais – onde o artista e designer nasceu e vive até hoje –, que um material se apresentou, redirecionando sua carreira, hoje premiada e celebrada internacionalmente, entre Europa e Estados Unidos. “Foi só mudar o foco e eu percebi que tudo de que precisava estava no meu quintal”, conta.

Literalmente no quintal: Tótora ministrava aulas de artes para crianças e resolveu desmanchar algumas caixas de papelão encontradas nos fundos de sua casa a fim de produzir papel machê para os alunos esculpirem. “Sobrou um pouco de massa. Não quis jogar fora e moldei um pratinho.” Uma vez seca, a peça esquecida em um canto chamou sua atenção dias depois. “Parecia uma casca de árvore, um vegetal, e me despertou alguma coisa, fiquei profundamente tocado. O primeiro contato com uma matéria poética, algo que vem da madeira e volta a ser origem.”

RECONHECIMENTO A UM TRABALHO AUTORAL

Houve ali um encontro. “Percebi que eu invento a minha própria matéria reinventando a natureza junto. Prefiro a palavra matéria porque matéria tem alma e material não.” Três décadas depois, Tótora é conhecido por ter concebido uma obra singular a partir de uma técnica própria que converte papelão em mesas, bancos, vasos, painéis e esculturas que habitam a fronteira entre a arte e o design. São criações que carregam as cores e texturas da natureza. “Ele desenvolveu uma matéria-prima, essa massa que vai se  transformando de maneira artesanal em peças com formas orgânicas, a exemplo da mesa Água”, comenta o arquiteto e curador Pedro Ariel. Em 2008, a mesa conquistou a primeira posição e uma menção honrosa em ação social no Prêmio Craft Design e o segundo lugar na premiação do museu A CASA do Objeto Brasileiro, na categoria objeto autoral. Um ano depois, foi a primeira colocada em Design Sustentável no Top XXI Mercado Design, da extinta revista Arc Design, e venceu como mobiliário o Brazil Design Award. Em 2010, mais um reconhecimento veio com a Bienal Iberoamericana de Diseño (BID), na Espanha.

A designer Graziela Nivoloni, coordenadora na graduação do Istituto Europeo di Design (IED), onde também pesquisa temas como biomateriais e design regenerativo, no campo da sustentabilidade, se recorda da rara impressão causada pela obra do mineiro quando ela atuava em escritórios de decoração. “É interessante porque os móveis modernistas precisaram de algumas décadas para atingir esse lugar do colecionador, mas o Tótora já nasce assim”, salienta. “É um design que guarda relação com o mercado, mas não de subserviência. Não tem como olhar para as peças dele pensando só na função. A gente se relaciona de modo diferente com elas porque o material se apresenta já com um processo, uma experimentação, um legado também na forma, que lembra pedra, espelho d’água…”, analisa a professora. Nesse sentido, a noção de sustentabilidade não passa pelo discurso de ocasião. Ao contrário, surge da relação íntima do artista com seu “quintal” – para usar uma expressão do próprio Tótora. “Há muitos anos, quando comecei, nem se falava de sustentabilidade.

A gente tem de diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, tem muito discurso oco por aí”, afirma ele. A produção de seu estúdio, aberto em 2005 e hoje empregando ao redor de uma dezena de profissionais da região, é inteiramente manual e, desde 2007, tem a certificação do Instituto de Qualidade Sustentável (IQS), braço do Instituto Centro de Capacitação e Apoio ao Empreendedor (Centro CAPE), fundado nos anos 1990 com olhos para o artesanato mineiro.

MATÉRIA CHEIA DE POESIA E PLASTICIDADE

Tudo começa por deixar de molho, durante um dia inteiro, o papelão de caixas e embalagens descartadas. Depois, esse material é processado em um liquidificador industrial, formando uma massa reciclada de celulose à qual adiciona-se cola. Essa é a matéria-prima das criações, que muitas vezes dispensam o desenho e brotam esculpidas em protótipos pelas mãos de Tótora, para então serem expostas à secagem (algumas ao sol, outras em estufa) e impermeabilizadas. Em alguns casos, há ainda a adição de pigmentos oriundos da terra local, como o óxido de ferro. “Às vezes, sou designer, às vezes artista, artesão… Na maior parte do tempo, sou artesão. Porque é um trabalho árduo, a gente tem de moldar, construir engenhocas, desvendar novos mistérios…”, relata o autor, cujas obras têm representação em cidades como Chicago e Los Angeles, nos Estados Unidos, e Zedelgem, na Bélgica. “Comecei a perceber a fronteira entre arte e design e isso me deu liberdade. Eu não descarto o erro pois dele sempre nasce alguma coisa.” 

As formas se inspiram na paisagem natal. Implantada a 1200 metros de altitude, Maria da Fé – a cidade mais fria de Minas Gerais e a primeira do Brasil a produzir azeite de oliva – oferece ao traço de Tótora a sinuosidade das montanhas embaladas em luz e sombra. “Moro no alto da Serra da Mantiqueira, sou envolvido com o entorno, vivo muito no silêncio contemplativo, absorvo a paisagem, e o desenho nasce experimental. A luz aqui é pura e pulsante. No meu trabalho, às vezes você encontra um pedaço de natureza, então objeto”, ele diz.

A relação de responsabilidade com o endereço de origem, dos recursos à mão de obra, é fundamental para pensar o design contemporâneo e seu rastro de impacto, na opinião de Graziela Nivoloni. “Um dos aspectos importantes do trabalho de Tótora é o fato de ele se voltar para seu território. Tempo e lugar são escalas que deviam ser incorporadas nas decisões do design.” A professora evoca a pesquisa que associa design, tecnologia e biologia da arquiteta israelense Neri Oxman para abordar uma interrogação contemplada pela obra do artista mineiro: como incluir o planeta em nossas escolhas? “Neri Oxman defende que o planeta é um cousuário. Não dá mais para fingir que você apenas atende um cliente e dane-se o resto. O designer é um tomador de decisões em muitos níveis.” Decisões que, em Tótora, nascem em relação de fé – no território, no material e na forma.

Posts relacionados

Deixe um comentário