PARA INOVAR, BIODESIGN

Essa técnica soma a inteligência da natureza ao conhecimento e à criatividade humanos, dando origem a tecnologias e produtos que têm o potencial de favorecer o Planeta.

Essa técnica soma a inteligência da natureza ao conhecimento e à criatividade humanos, dando origem a tecnologias e produtos que têm o potencial de favorecer o Planeta

POR CRISTIANE TEIXEIRA

 O QUE UMA LUMINÁRIA feita de filamentos de cogumelos, um tecido vegetal que lembra o couro e a impressão em 3D de um feto real têm em comum? Sim, a resposta está no biodesign, que faz a interseção entre diversas áreas do conhecimento. Inicialmente, o termo estava ligado a inovações médicas, foco do primeiro laboratório de biodesign de que se tem notícia, o da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, inaugurado em 2001. Pouco depois, o Departamento de Artes & Design da PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica) começou a investigar o assunto, com simulações e modelagens tridimensionais físicas e virtuais.

A iniciativa carioca resultou, em 2009, no já mencionado feto impresso em 3D – o primeiro do mundo –, obtido a partir de ultrassonografias de uma mulher grávida. Mais que a recordação de um momento único, o modelo era parte de um estudo sobre inovações tecnológicas na medicina fetal, conduzido pelo designer Jorge Lopes, professor do curso de Design da PUC-Rio e pai do bebê mencionado, em cooperação com o médico Heron Werner Junior. Atualmente, a dupla está à frente do Biodesign Lab, parceria entre a PUC-Rio e o grupo de saúde Dasa. “Aqui nós fazemos a interface entre o design e a medicina. Começamos na área fetal, traduzindo em 3D situações muitas vezes difíceis de explicar a uma mãe e um pai, e agora também atendemos casos de neurologia, cardiologia, ortopedia, oncologia e transplante”, explica Jorge. Para Heron, a realidade aumentada e os modelos físicos não só melhoram a comunicação com o paciente, mas também trazem ganhos na qualidade das cirurgias. “Tenho 35 anos de formado e nunca imaginei que trabalharia com designers”, afirma o médico, chamando a atenção para a multidisciplinaridade inerente ao biodesign.

Mudança de foco

De Stanford para cá, o conceito se diversificou e o termo biodesign vem sendo mais e mais apropriado por escolas e profissionais do design. Seu interesse principal? Desenvolver substitutos sustentáveis para produtos que já estão aí. Em outras palavras, produtos que gerem o mínimo impacto negativo, ou, ainda, produtos com design circular.

“A gente quer resgatar a inteligência da natureza, entender como ela vem se resolvendo em seus bilhões de anos”, diz a arquiteta e designer Graziela Nivoloni, do IED-SP (Istituto Europeo de Design). Há alguns anos, a professora, que é coordenadora da graduação em Design de Produto e Serviço, começou a insistir na inclusão do biodesign na grade curricular. Foi assim que surgiu o laboratório aberto de biomateriais, onde alunos e pesquisadores testam o que acontece quando se mistura tapioca, beterraba, urucum, borra de café, casca de ovo ou barbatimão com resinas naturais, como ágar-ágar (derivado de algas) e látex. A ideia é chegar a biocompósitos alternativos a materiais prejudiciais ao meio ambiente, como o plástico, que leva mais de 400 anos para se degradar – já os biomateriais se decompõem naturalmente em poucos meses, caso não sejam impermeabilizados com substâncias sintéticas agressivas.

É o que acontece com produtos feitos de micélio, rede de raízes de fungos que vem sendo investigada em vários países. No Brasil, a startup Mush, fundada
por cientistas do Paraná, começou a estudar essa matéria-prima viva focando em itens para construção, decoração e embalagens, e mais recentemente, avançou para os biotecidos e alimentos veganos com textura de frango. “O micélio é a tecnologia por trás de tudo. Ele gera alternativas a coisas que já existem, porém não são mais sustentáveis”, define Ubiratã Sá, CEO da divisão Mush Materiais, que fabrica painéis acústicos para forro, luminárias, objetos decorativos e embalagens moldadas.


Design circular

A tecnologia que a empresa está patenteando para criar esses produtos junta o micélio a derivados da agroindústria, como casca de arroz, serragem e bagaço de cana. No laboratório, em condições controladas, o micélio se desenvolve dentro de moldes e, ao fazer isso, aglutina os resíduos e ganha a forma desejada. Em

seis anos de existência, desde que nasceu incubada na Universidade Tecnológica Federal do Paraná, a Mush trabalha com estúdios de design na criação de peças premiadas dentro e fora do País.

Entre elas está a luminária Hogar, que acaba de levar
o Prêmio Abilux Design de Luminárias e abocanhou um troféu na edição 2023 do Design for a Beer World, do Centro Brasil Design. Os modelos são assinados pela arquiteta e lighting designer Ana Laronga e pela designer Maria Manuela Bertola Estupinan. Donas da Ola Luminárias Acústicas, elas se interessaram em desenhar um modelo para ser fabricado em micélio assim que souberam que o material, além de absorver ruídos, é biodegradável. “A gente não pode mais criar por criar. Por que a gente cria coisas que ficam para sempre no Planeta?”, observa Ana. Na jornada de aprendizado sobre a nova matéria-prima, a modelagem foi a principal limitação encontrada por elas. “Os moldes são feitos em impressora 3D e, dependendo do tipo de filamento, ficam com ranhuras que marcam

as peças produzidas”, continua. As emendas entre as partes de cada cúpula também foram um desafio vencido. “O micélio foi nossa primeira experiência com biomateriais e abriu uma janela para outras possibilidades”, declara Maria Manuela.

“O micélio foi nossa primeira experiência com biomateriais e abriu uma janela para outras possibilidades” – MARIA MANUELA BERTOLA ESTUPINAN

 

O mesmo Design for a Beer World e, mais recentemente, a edição 2024 da premiação internacional iF Design Award laurearam outra criação em micélio, a urna funerária Navegar, do Furf Design Studio com a Mush. O barquinho-urna tanto pode ser guardado em casa quanto ser lançado em um curso d’água ou deixado na terra, dispersando as cinzas da pessoa falecida à medida que se degrada naturalmente. “O Furf está entre os pioneiros no biodesign, sempre trabalhando com cientistas e especialistas de outras áreas”, afirma Maurício Noronha, que fundou o estúdio com o sócio Rodrigo Brenner, em Curitiba, há 13 anos – hoje eles têm uma segunda sede em Milão.

O primeiro biomaterial que conheceram e utilizaram, lembra Maurício, foi um biotecido, da Nova Kaeru, de folhas da orelha-de- elefante, planta que cresce rapidamente. “O material é fantástico: tem a mesma resistência e aparência do couro, mas seu processo de curtimento não leva metais pesados”, explica o designer. E reflete: “Biodesign é mais amplo que biomateriais. É importante que a gente se inspire na natureza, porque ela é inteligente – mas o ser humano é criativo. Quando juntamos os dois, conseguimos criar coisas incríveis!”.

Neste ano, a inauguração da sorveteria Crema Lab, na capital paranaense, comprovou mais uma vez o pioneirismo de Maurício e Rodrigo: eles assinam o revestimento à base de micélio da fachada do imóvel, feito até então inédito em se tratando de espaços comerciais. O principal cuidado durante o desenvolvimento das placas que lembram uma casquinha de sorvete, produzidas pela Mush, foi garantir sua resistência e a impermeabilização correta.

Obstáculos a ultrapassar

“As barreiras que os biomateriais impõem são sempre em relação a resistência, estabilização, durabilidade e impermeabilização”, afirma a designer e pesquisadora Marina Belintani, fundadora da greentech Mabe Bio. Ela se debruça sobre esses aspectos há alguns anos e mais especificamente desde que começou a pesquisar as vagens do angico – árvore nativa no Cerrado, na Caatinga e na Mata Atlântica –, pensando em conceber um biopolímero com propriedades semelhantes

ao couro animal. “A ideia é aproveitar um resíduo que hoje apodrece no solo depois que as vagens caem e liberam as sementes”, relata. Suas pesquisas lhe renderam uma sócia, Rachel Maranhão, e um investimento para continuar desenvolvendo esse biomaterial que já chama a atenção da indústria (de calçados e bolsas, revestimentos de estofados etc.), apesar de ainda não ser um produto. Ao comprovar que é possível curtir o bioplástico de angico com

taninos naturais (extraídos de angicos encontrados no Nordeste), como se fazia com as roupas de vaqueiros e cangaceiros no passado, Marina já deixou para trás algumas das barreiras que citou, mas há outras ainda: “Não existem muitos estudos sobre a frutificação do angico, mas parece que ela predomina entre maio e dezembro, de dois em dois anos. Matéria-prima tem, mas é preciso desenvolver a cadeia de suprimentos e a produção”.

O biodesign ainda dá seus primeiros passos – e não é só no Brasil –, mas é positivo que não seja mais assunto apenas de cientistas e criadores. “A indústria e os designers têm muita responsabilidade pelo rumo que o mundo está tomando. Mas também podem transformar essa realidade. Hoje não faz mais sentido criar qualquer material ou produto que não seja sustentável”, atesta Maurício, do Furf.

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