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Grafite de Tinho espelha vida e arte

As maquiagens do grupo Kiss e as do cantor Ney Matogrosso, em sua fase de Secos & Molhados, também são referências em seu trabalho.

POR ANGELA VILLARRUBIA

Quem olha para um grafite em um prédio mal consegue imaginar que seu criador, em algum momento, pudesse ter medo de altura. Pois esse era o caso do street artist Walter Nomura, o Tinho. Até 2006, ele somente havia se movimentado junto a muros ou paredes com pé-direito mais ou menos padrão. Já consagrado, foi convidado para sua primeira grande aventura no exterior: teria de pintar, junto a outros artífices, diversos edifícios dentro do projeto Joga Bonito, da Nike, em Berlim (Alemanha), para a Copa do Mundo de Futebol. Os imóveis receberam andaimes fixos e, para enfrentar o temor logo no primeiro deles, escolheu o último andar. Era uma tarefa noturna, com projetor, para fazer o riscado do desenho na empena. O alívio é que a luz ofuscava o panorama a seus pés, e ele pôde se concentrar no traçado. Já de dia, optou por um patamar mais baixo, para se habituar com a altura, que logo deixou de ser uma provação. Essa é uma das muitas crônicas de Tinho, um dos nomes históricos da arte urbana brasileira.

De pichador a grafiteiro, esse passo foi relativamente rápido em seu percurso. Neto de japoneses, exibe em seu estilo ecos de sua ancestralidade e, principalmente, de sua trajetória de vida, devido a suas vivências como skatista no coração de São Paulo. Na década de 1980, o então menino andava livre e muitas vezes solitário, com seu skate, pelo bairro onde morava, a Vila Gustavo, na Zona Norte da cidade. Isso lhe dava autonomia para realizar as primeiras pichações, até que, em uma sexta-feira, foi flagrado por uma vizinha, cliente de sua mãe cabeleireira. Na segunda-feira, os progenitores asseguraram o início de sua vida laboral, como office boy, em um escritório de advocacia no centro velho. Logo na primeira semana, um companheiro de expediente, também aficionado aos pichos, o apresentou aos colegas de hobby na Praça Ramos. Assim, seu mundo expandiu-se com as andanças em grupo, que o levaram a descobrir o grafite. Prontamente passou para o estêncil, que ele particularmente não apreciou, pois engessava sua engenhosidade. Ao assistir a um filme na Mostra Internacional de Cinema, conheceu o freestyle com spray, com o qual se encontrou. Ainda adolescente, paquerava os muros da penitenciária do Carandiru, tomado por pichações. Não teve dúvidas: apresentou-se na entidade e conseguiu permissão para pintá-los.

Instalação com Bonecos de Pano Costurados. III Bienal Graffiti Fine Art.

Durante a execução, um Ford 1951 parou na calçada e dele desembarcou, “com jaqueta de couro e visual rockabilly”, aquele que seria um dos expoentes da street art no Brasil, o Fábio Ribeiro,  mais conhecido como Binho Ribeiro. Ali não apenas nasceu uma amizade, como Tinho teve a oportunidade de ser apresentado a outros praticantes do gênero – como osgemeos ou Speto – e de começar a concretizar trabalhos conjuntos. “Os jovens daquela época estavam interessados em revistas em quadrinhos, desenhos animados, skate, hip-hop, rap. Não vislumbrávamos ganhar dinheiro”, relata, ao dizer que somente plasmava nas paredes os temas que o deleitavam. Ele confessa que, quando remunerado, a sensação era a de acertar na loteria. Sua passagem de dois anos pela PUC, no curso de Ciência da Computação, não foi satisfatória, pois não se via naquilo nem se dava com os demais estudantes (posteriormente, cursou Artes na FAAP). Quando saia da instituição, na Rua Marques de Paranaguá, praticava skate na Praça Roosevelt, o que foi determinante para o conteúdo de sua obra. Daí surgiram as imagens de crianças com rostos melancólicos, olhos marejados, muitas vezes solitárias. “Eu as observava nos semáforos, vendendo doces ou pedindo esmola.

Comecei a desenhá-las enquanto cheiravam cola, choravam ou sentiam tristeza, porque é o que eu via todos os dias”, conta, ao ressaltar que as meninas/mulheres estão muito presentes em seus murais por serem vítimas recorrentes da violência. Ele ainda percebeu que esse tipo de tema chamava mais a atenção do que os rostos felizes. “Talvez por um aspecto simbólico. As pessoas se sensibilizam e pensam a respeito”, analisa. A influência do nipônico Teatro Noh, no qual os principais atores utilizam máscaras que representam arquétipos, também se reflete no seu trabalho. Ele acredita que, graças a essa inspiração, seus pálidos personagens se tornam universais. Mas seu estilo também é resultado de outras referências, como as maquiagens do grupo Kiss ou as do cantor Ney Matogrosso, em sua etapa de Secos & Molhados.

Na imagem de capa, Não Me Olhe Assim… Tucuruvi, São Paulo e na imagem acima, Tecnologia, óleo sobre tela.

Suas figuras, apresentadas em diversas situações, muitas vezes são acompanhadas pelo desenho de um boneco colorido, em patchwork. Este também surge a partir de suas vivências junto às crianças da Praça Roosevelt, que não tinham brinquedos, ao retratar uma menina com um bonequinho na mão. Essa peça, com o tempo, saltou para a “vida real”: na 3a Bienal de Graffiti Fine Arte, em 2015, realizada no Pavilhão das Culturas Brasileiras, no Parque Ibirapuera (São Paulo), ele instalou 12 toys de 1,5 m, em diversas situações (sentados, abraçados, contemplando as obras), uma das quais convidava à interação, pois os visitantes poderiam levar roupas infantis para doação ao Instituto Meninos de São Judas Tadeu (IMSJT).

A ação terminou com duas toneladas de peças. A ideia se repetiu em outros momentos, não apenas com roupas, mas também com brinquedos ou mesmo bonecos de pano ou bichos de pelúcia, como na exposição Além das Ruas: histórias do graffiti, realizada em 2023, no Itaú Cultural (São Paulo). Assim, a arte se funde à vida (e vice-versa).

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