Nada detém a incansável Jô Vasconcellos, arquiteta mineira que chega aos 77 anos encarando a vida e o trabalho com vigor e otimismo.
POR JOANA BARACUHY
PROCURAR SABER de Jô Vasconcellos no mundo digital pode sugerir, erroneamente, uma personalidade discreta e quieta. Encontram-se menções aqui e ali, tantas vezes associadas à sociedade com Éolo Maia, para depois aparecer uma conta no Instagram com as estripulias da vovó Bibi. Mas não se engane: Jô foi e vai além das obras que receberam a chancela de pós-mineiras, realizadas com o marido. Após a morte de Éolo, ela seguiu mirando em trabalhos institucionais, amparada por especializações em restauro e paisagismo. Hoje em dia, comanda os projetos muitas vezes do canteiro. A tecnologia é um entrave, ela avalia. Mas a entusiasmada Maria Josefina diz não ver no horizonte o momento de parar de aprender e de trabalhar.
&DESIGN: Como está sua vida?
JÔ VASCONCELLOS: Trabalho menos, mas com muito gosto. Na pandemia, eu aprendi a correr atrás de projetos que me interessam, ainda mais do que antes. Sou muito animada e sociável. Gosto de encontrar as pessoas, de um botequim. Tenho vários amigos jovens, e isso me torna alguém atualizado. Pesquiso constantemente, leio, procuro renovar meus conhecimentos. Pena que, tecnologicamente, pouco avancei. Não uso programas de projeto e, sim, cabeça, lápis e papel. Emprego a “inteligência humana”: vou ditando o projeto para meus estagiários, fluentes em Revit, que produzem imagens, cortes, perspectivas etc.
&D: O que você está fazendo?
JV: Estou projetando gratuitamente o restauro e a intervenção num edifício tombado, de autoria do Sylvio de Vasconcellos (1916-1979), onde o Instituto Cultural Brasil-Estados Unidos (ICBEU) vai ensinar inglês e tecnologia para pessoas em situação de vulnerabilidade. Aí eu passei meu escritório para
o local da obra – sempre que dá, faço isso. Se surge algum problema, eu resolvo na hora e logo sai uma prancha “quentinha”. Fora isso, tenho me dedicado
à reforma de uma casa nos Hamptons, nos Estados Unidos, uma construção dos anos 1960 toda de madeira. É um imóvel de interesse cultural, então vou com cuidado, acompanho tudo pelo celular.
&D: Como é atuar também com paisagismo e patrimônio?
JV: Quando trabalhava no escritório com o Éolo [marido e sócio por 30 anos, falecido em 2002], eu me sentia pouco preparada para mexer em fazendas do século 19, fazer um anexo, coisas assim. Faltava técnica, teoria. Aí me especializei em restauração de bens imóveis. Também aprendi paisagismo para assumir projetos de praças, parques. Foi a minha estratégia para me diferenciar, já que estava ao lado de gente muito boa, e complementar a equipe.
&D: Como foi sua formação?
JV: Eu cursei a Universidade Federal de Minas Gerais, mas estudar era difícil na época porque simultaneamente eu era bailarina profissional, tinha outros compromissos e viagens. Me formei em dezembro de 1971 e me casei em janeiro de 1972. Pouco depois me juntei à equipe do Éolo e tive três meninas, fui deixando de dançar. A gente separava bem a vida profissional da íntima. E não faltavam dificuldades financeiras. Cobrávamos pouco e detalhávamos demais, levamos inúmeros calotes. Me lembro de fazer maquetes caríssimas de madeira, do tamanho de um Fusca, achando que só assim para emplacar nossas propostas, diferentes da típica casa com telhadinho encomendada.
&D: O que era a pós-mineiridade?
JV: Sempre tivemos consciência de que era preciso proporcionar bem-estar, ter cuidado na implantação, respeito ao meio ambiente, atenção à ventilação – a partir dos exemplos da arquitetura mineira e colonial, tão bem adaptada ao clima local. Também contribuiu não termos uma escola forte a seguir, como a escola moderna paulista ou a carioca. Portanto, não havia vigilância nem crítica, mas sim autonomia para experimentar tecnicamente, espacialmente, criar tecnologias… Foi uma geração para a qual não existia disputa entre arquitetos, éramos companheiros. E juntos fomos para fora do Brasil quando o Éolo passou a publicar nossos trabalhos na antiga revista Pampulha. Foi ela que nos fez conhecidos e à tal pós-mineiridade.
&D: Depois da morte dele, como foi abrir um escritório próprio?
JV: Por mais que eu me impusesse – dava palestras e ia a vários congressos –, imaginava que as pessoas me viam como uma arquiteta fraca, subjugada ao Éolo. Então decidi me mostrar. Para isso, optei por atuar sozinha, estabelecendo parcerias pontuais. Faço isso até hoje. A gente já participava de concursos, então segui nesse caminho. Por uma dádiva divina, o Conselho Regional de Medicina ia fazer sua sede em BH e fui chamada para o concurso, fechado. No fim, eu (com a ajuda do arquiteto Sergio Palhares) venci quatro grandes escritórios daqui. Aí pensei: “Agora eu posso fazer o que quiser!”.
&D: Como você descreve seu caminho?
JV: Outros fatos condicionaram meu trajeto. Um amigo dos tempos da intervenção na Praça da Liberdade (feita em 1991, ainda com Éolo), o Roberto Martins, trabalhava na prefeitura e me chamou para um novo restauro da praça – que foi muito bem- sucedido. Apareci na televisão, me tornei conhecida.
Quando surgiu a Cidade Administrativa, sede do governo encomendada a Oscar Niemeyer (1907- 2012), muitos edifícios que abrigavam as secretarias, alguns do fim do século 19, em estilo eclético, foram esvaziados. De novo, Roberto me pediu para transformar sete desses prédios em museus, num Circuito Cultural. Fui parar no escritório de empreendedores públicos, 70 profissionais da iniciativa privada reunidos para atuar em áreas estratégicas. Gostei muito dessa época, senti que podia fazer a diferença. Sempre preferi trabalhos que alcançam várias pessoas.
Depois soube dos planos de uma sede para a Orquestra Filarmônica e corri lá, me ofereci para projetar. Foi uma experiência genial. Quando mudou o governo, eu fui exonerada restando duas obras inacabadas, então pedi para ficar no cargo – sem receber – até terminar. Levou mais um ano e meio, fiquei sem dinheiro. Mas era uma responsabilidade civil minha.
&D: Você tem um lado político?
JV: Eu apenas persigo oportunidades para contribuir com a comunidade, a população. Fazer arquitetura é político. Daí se entende meu desinteresse em fazer uma casa depois da outra. E também a minha surpresa quando a reforma de um simples apartamento sai em revistas até na China – enquanto uma obra complexa, de 41 mil m2, quase não tem divulgação. Talvez tamanho destaque para o apartamento seja reflexo do crescente reconhecimento da importância dos centros urbanos, das soluções de uso misto – o tal imóvel fica no coração de BH. Uma cidade só tem vida quando as coisas e pessoas estão juntas e misturadas.