Surgido na Europa graças à prensa de Gutemberg, esse estilo literário, hoje respeitado pelos acadêmicos, só chegou ao Brasil no século 19 – Cordel e a Corda do Tempo
Muito antes de o Brasil ser descoberto, a literatura de cordel já existia. Mundus Novus, espécie de folheto de cordel, datado entre 1503- 1504 e escrito em latim, foi a publicação que noticiou as descobertas de novas terras. Com a prensa recém-lançada por Johannes Gutenberg, no século 16, esse gênero literário passou a ser produzido e divulgado na Europa. “Na época, a produção e o comércio de folhetos alcançaram enorme proporção nos países europeus. Na Itália, havia vendedores ambulantes que, à maneira de mascates, comercializavam os chamados libretti muriccioli, estampados nas prensas napolitanas”, afirma o professor Francisco Claudio Alves Marques, especialista no tema.
Ele conta que as primeiras narrativas, gravadas em papel ordinário e a baixo preço, em prosa e verso, consistiam em adaptações de livros de autores consagrados da literatura italiana, como Ariosto e Torquato Tasso. Até o final do século 19, era por meio desses libretti que os camponeses italianos se informavam sobre histórias de acontecidos, vida dos santos, briganti (bandidos) e romances de cavalaria adaptados em rimas.
Na França, por volta dos séculos 16 e 17, predominaram os livrinhos de colportage (que significa mascate), impressos no mesmo formato dos folhetos italianos. No mesmo período, os pliegos sueltos ganharam as ruas e praças da Espanha, com inúmeras reedições da História do Imperador Carlos Magno.
“Mas foi em Portugal que ganhou o nome de literatura de cordel, dando continuidade aos temas e arquétipos reproduzidos por toda a Península Ibérica. Entre eles, as histórias da sábia Donzela Teodora e a da esposa casta injustamente caluniada de adultério, a Imperatriz Porcina”, explica Marques. O professor ressalta que esse tipo de literatura teve enorme importância cultural e de inclusão social, porque no período os livros eram raríssimos e escritos em latim, fazendo com que grande parcela da população europeia não tivesse acesso ao conteúdo escrito.
NUNCA DIGA NORDESTINO
QUE DEUS LHE DEU UM DESTINO
CAUSADOR DO PADECER
NUNCA DIGA QUE É O PECADO
QUE LHE DEIXA FRACASSADO
SEM CONDIÇÕES DE VIVER
NÃO GUARDE NO PENSAMENTO
QUE ESTAMOS NO SOFRIMENTO
É PAGANDO O QUE DEVEMOS.
A PROVIDÊNCIA DIVINA
NÃO NOS DEU A TRISTE SINA
DE SOFRER O QUE SOFREMOS
DEUS O AUTOR DA CRIAÇÃO
NOS DOTOU COM A RAZÃO
BEM LIVRES DE PRECONCEITOS
MAS OS INGRATOS DA TERRA
COM OPRESSÃO E COM GUERRA
NEGAM OS NOSSOS DIREITOS.
POEMA “NORDESTINO SIM, NORDESTINADO NÃO”, PATATIVA DO ASSARÉ
Aqui, no Brasil, a literatura de cordel só aportou no século 19. No Rio de Janeiro, havia várias lojas que vendiam cordéis produzidos em Portugal. No entanto, com o surgimento dos jornais, eles desapareceram da então capital federal do Brasil ao mesmo tempo em que ganharam leitores no Nordeste, em especial no interior, onde as comunidades não tinham acesso a livros nem a jornais. “A partir de 1896, as narrativas de cordel portuguesas começaram a ser adaptadas pelos poetas pioneiros do cordel impresso no Nordeste. Entre eles, José Galdino da Silva Duda, Leandro Gomes de Barros, João Martins de Ataíde e Francisco das Chagas Batista”, diz Marques. “Histórias do romanceiro ibérico, em prosa ou verso, passaram a ser divulgadas entre o sertão e as capitais nordestinas no formato de folhetos impressos em sextilhas e décimas, sendo que a prosa não prosperou entre os nordestinos”. Entre os sucessos, estão os folhetos João da Cruz, Imperatriz Porcina, Donzela Teodora, Pedro Malasartes, Pedro Cem, Carlos Magno, Roberto do Diabo.
Segundo o professor, a partir do final do século 19, muitas dessas histórias já eram do conhecimento dos cantadores do sertão, que as ajustavam aos acordes de suas violas e rabecas. Eles também cantavam novas narrativas em saraus à luz de lampião. Quando a rádio e a tevê, entre as décadas de 1950 e 1960, se expandiram para todo o País, chegando ao Nordeste, o cordel parecia ameaçado.
“Esse tipo de literatura teve enorme importância cultural e de inclusão social, porque no período os livros eram raríssimos e escritos em latim, fazendo com que grande parcela da população europeia não tivesse acesso ao conteúdo escrito.”
“Ocorre que o cordel se reinventou, adotando temas mais universais e de interesse da população brasileira”, analisa Marques. Arievaldo e Klévisson Viana continuaram a tradição de narrar em verso. Mulheres como Dalinha Catunda e Josenir Lacerda também entraram nesse universo antes dominado pelos homens. Jarid Arraes, com os 15 cordéis da coleção Heroínas Negras Brasileiras, e Bráulio Bessa, cearense que canta o sertão, segundo o professor, “com a grandeza de Patativa do Assaré”, são alguns destaques da geração atual.
“Hoje, muitos poetas têm formação acadêmica e continuam com a produção de folhetos a todo vapor. O cordel ganhou o Brasil e despertou o interesse da academia, que passou a encará-lo como uma vertente fértil da literatura brasileira”.
// Por Eliana Castro