A cidade gelada, verde, dona de um sistema de transporte replicado em mais de 80 países e com fama de mal-humorada se revela silenciosamente a quem estiver disposto a caminhar por suas entranhas, desvendar sua arquitetura, ler seus autores e ver seus artistas. Curitiba é mais plural que se pensa. Traga o seu guarda-chuva e siga o roteiro.
POR LARISSA JEDYN
A esfinge Curitiba, capital mais fria do Brasil, tem fama de mal-humorada, de sustentável, de cidade inteligente. Exportou um modelo revolucionário de transporte, marcado pelos ônibus biarticulados e estações-tubo, que foi replicado em mais de 80 países. É multiétnica, afinal, foi berço de imigrantes europeus, que vieram para cá entre os séculos 19 e 20, e hoje recebe migrantes sul-americanos, sírios e afins. Venha, experimente decifrá-la. Quem pode ajudar na tarefa é Paulo Leminski (1944-1989), que nasceu, trabalhou, amou, se divertiu e morreu em Curitiba. A relação entre a cidade e o poeta era, segundo ele mesmo, visceral. “Detesto cidades fáceis de ler. Só amo cidades que já sei de cor”, escreveu em Ler uma Cidade: o alfabeto das ruínas. A “cidade simbolista/ quieta/ caipira/ metrópole tímida/ terra de bares e longas encucações/ fria/ com poentes longos como agonias” era também o lugar para onde voltava, depois das ausências. “Eu jamais consegui morar em outro lugar por muito tempo. (…) Sob o ponto de vista afetivo, deixei muito claro que eu nunca saí de Curitiba. Pinheiro não se transplanta.”
O Leminski dos haicais trouxe aí outra referência tipicamente curitibana: o pinheiro, ou melhor, a araucária, árvore imponente, em formato de taça, pré-histórica, que nos dá pinhões há pelo menos 300 milhões de anos e é um dos elementos mais importantes do Movimento Paranista, uma proposta estética regional, concebida para valorizar a identidade paranaense por meio de elementos que simbolizassem a singularidade do estado nas artes.
Assim, pinheiro, pinhão, erva-mate, onça e gralha azul passaram a figurar em detalhes de fachadas, nas calçadas em petit-pav é e em murais datados dos anos 1920 a 1930.
Curitiba pode até não ter mar, mas tem tanta outra coisa. Até vampiro. Faça chuva ou sol, o escritor Dalton Trevisan, autor de O Vampiro de Curitiba, costuma flanar anônimo pelas calçadas do centro. É figura conhecida, quase nunca vista, e, se vista, preferencialmente ignorada. Conhecido por “vampirizar” seus livros, de modo a retirar palavras a cada reedição de suas obras, nosso vampiro é de poucos amigos. Assim como os curitibanos, diriam alguns. Intriga, para outros. A cidade de clima instável e personalidade peculiar vale a visita. Curitiba se revela silenciosamente a quem estiver disposto a caminhar ou embarcar em uma das jardineiras, que passeia pelos principais pontos turísticos. Traga o seu guarda-chuva e siga o roteiro.
A simplicidade
e a dimensão
humana dos projetos eram
marcas do jeito Lerner de criar.
Ele buscava reforçar
a cidade como um
cenário de encontros
Ao lado, Jaime Lerner.
A CURITIBA “LERNERIANA”
O arquiteto Jaime Lerner (1937-2021) é a cara de Curitiba. Como foi ele quem fez a cidade do jeito que ela é, então não é de se estranhar que suas marcas estejam por toda a parte. Elegeu-se prefeito em 1970, organizou o sistema de transporte, os eixos urbanos, criou parques para drenar áreas
encharcadas, transformou em calçadão a principal rua de comércio da cidade. Foi nesse tempo que o jornal New York Times publicou uma reportagem sobre o arquiteto brasileiro que queria revolucionar uma cidade ao Sul do mundo.
Voltou anos mais tarde para a prefeitura, inaugurou obras como o seu metrô de superfície (os ônibus biarticulados e as estações-tubo) e veio com a ideia de comprar lixo para evitar que as pessoas o jogassem nos rios e, de quebra, ensinar as crianças a lógica da separação dos rejeitos. Estava criada a campanha e o slogan “Lixo que não é lixo não vai para o lixo. Se-pa-re”. A simplicidade e a dimensão humana dos projetos eram marcas do jeito Lerner de criar. Ele buscava reforçar a cidade como um cenário de encontros. Assim, ressignificou um prédio público assinado por Oscar Niemeyer (1907-2012) e o transformou em um dos mais populares museus do Brasil – o Museu do Olho, apelido dado graças à intervenção urbana em forma de um olho gigantesco, em concreto e vidro, projetado por Niemeyer e executado em apenas seis meses. Quer mais? Sob o conceito de acupuntura urbana, que virou título de um livro seu, criou a Ópera de Arame e a Pedreira Paulo Leminski, em uma área abandonada; fez junto de Abraão Assad, outro arquiteto, o Teatro do Paiol; em uma antiga fábrica de pólvora, a Rua 24 Horas, o Jardim Botânico. Tudo para ontem, como ele gostava. Por essas e outras, a revista Time escolheu Jaime como um dos 25 pensadores mais inovadores do mundo.
Acima, grafite de Rimon Guimarães.
NA RUA TEM ARTE
A arte é capaz de transformar lugar de passagem em espaço de convivência. Em Curitiba, a tradição de arte de rua vem, sobretudo, dos murais criados por Poty Lazzarotto (1924-1998), artista que, com uma linguagem pictórica e multicolorida, recriou fatos, cenas e personagens, como um cronista caprichoso e apaixonado. Pudera, Poty nasceu no dia em que Curitiba comemora seu aniversário – 29 de março. Neste ano é celebrado o centenário do artista, responsável pelos murais em concreto do Teatro Guaíra, da Praça XIX de Dezembro, e dos em azulejos, como o da Travessa Nestor de Castro ou o da Caixa D’Água, que fica no Alto da Rua XV.
Outro que anda mudando a cara da cidade é o artista GardPam, que se dedica há mais de 10 anos ao grafite e vem homenageando artistas importantes de Curitiba em pinturas de grande escala nas laterais de prédios no centro. O primeiro, com 1 mil m2, estampou o rosto de Paulo Leminski perto do prédio histórico da Universidade Federal do Paraná, entre a Rua XV e a Marechal Deodoro. Depois, foi a vez da doce poetisa Helena Kolody (1912-2004) ser retratada em um prédio que faz vista para a Praça Generoso Marques. O terceiro, bom, esse está nos planos: GardPam quer homenagear Poty. Veremos onde será a obra.
Já o colorido de Rimon Guimarães subverte a atmosfera tradicional do centro da cidade, causa estranhamento e encantamento com suas figuras
brasileiríssimas e natureza exuberante. Pretos velhos, onças, pássaros, baianas e máscaras africanas mostram que Curitiba é hoje espaço de todos e de todas. “O espaço público tem uma abrangência maior e não possui distinção de raça, religião e classe social. A arte, então, fala por si. Meus trabalhos tocam as pessoas que se sentem atraídas pelas cores, compreendem algum contexto dentro de sua realidade, que, muitas vezes, nem mesmo eu pensei”, comenta o artista, que tem obras espalhadas pelo mundo inteiro.
Em tempo: no ano passado, o plenário da Câmara Municipal de Curitiba (CMC) aprovou um projeto de lei com o objetivo de regulamentar e incentivar a arte urbana na cidade, como muralismo, poesia visual, grafite, pintura, lambe (colagem) e mosaico.
As construções modernistas
mantiveram-se absolutamente
atuais como passar do tempo.
O modernismo envelheceu
bem, ao contrário de outras
escolas arquitetônicas
Ao lado, Teatro Guaíra.
MODERNISTA, COM ORGULHO
João Batista Vilanova Artigas (1915-1985) nasceu curitibano e, em São Paulo, criou a Escola Paulista, também conhecida como Brutalismo. Racional, funcional e sem ornamentação, o movimento olhava para a cidade como espaço comum, promovia o arquiteto a agente político e as estruturas eram talhadas para possibilitar uma vida melhor para quem dependesse delas. De Artigas, que se destacou como um dos gigantes da arquitetura moderna no mundo, ainda restam três construções em Curitiba: o Hospital São Lucas, a Casa Bettega e a Casa Niclewicz. E elas, de certa forma, guardam a natureza modernista, destacada por linhas simples, conceitos objetivos, funcionalidade e, sobretudo, ausência de excessos e ornamentos. “As construções modernistas mantiveram-se absolutamente
atuais com o passar do tempo. O modernismo envelheceu bem, ao contrário de outras escolas arquitetônicas”, comenta o arquiteto e professor de arquitetura Salvador Gnoato.
O primeiro projeto de arquitetura modernista de Curitiba foi a casa de Frederico Kirchgässner, erguida em 1930 e ainda em pé no São Francisco. Dali, é só seguir caminhando pelo centro da cidade, em direção ao Alto da Rua XV, para se deparar com uma série de criações desse tipo. Concreto armado, panos de vidro, murais ornamentais, brises, colunas, vãos e volumes vão se combinando a linguagens autorais de arquitetos de produções modernistas e até hoje “moderninhas”. Cercando a Praça Tiradentes, por exemplo, onde está o marco zero da cidade, fica, na Rua Barão do Cerro Azul, um legítimo exemplar modernista de Elgson Ribeiro Gomes, com suas formas arredondadas, torre única, linhas simples. Pegando à esquerda a Travessa Nestor de Castro, vem a dupla de torres do edifício da Glória, assinado pelos também modernistas Forte Netto e Orlando Busarello. Ao descer, à esquerda, pela Doutor Muricy, surge a Biblioteca Pública de Romeu Paulo da Costa. Seguindo pelo calçadão da Rua XV, vá ao Teatro
Guaíra, projetado por Rubens Meister. Rumo acima, uma ilha de edifícios modernistas. Para a esquerda, o Passeio Público e o Centro Cívico, cheios de exemplares da escola. E, dentro de muitos desses prédios, outro presente: mobiliários de Sergio Rodrigues, o criador da poltrona Mole, que – saibam – veio para Curitiba logo depois da formatura, em 1952, para projetar o Palácio das Secretarias. Como não encontrava mobiliário para seus projetos, resolveu abrir aqui uma loja de móveis modernistas, macios, cheios de curvas, brasileiros, adequados ao seu gosto – era a Móveis Artesanal. No livro sobre Sergio Rodrigues, da Icatu, André Seffrin descreve a vida em Curitiba na época em que o designer abriu sua loja: “A Curitiba do início dos anos 1950, no plano intelectual, era de Dalton Trevisan conquistando seus primeiros leitores nacionais (…). Era a Curitiba de Poty Lazzarotto e de Guido Viaro, nas artes gráficas e na pintura. Comer galinhada nos restaurantes de Santa Felicidade, macetar pinhão no inverno, temperatura abaixo de zero”.