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Tipografia da identidade

Arte de arranjos visuais das letras se consolida como poderoso elemento de construção de marca.

POR EDSON VALENTE

 

O pintor, arquiteto, artista gráfico e tipográfico alemão Peter Behrens foi o responsável pela primeira forma documentada de um Sistema de Identidade Visual (SIV), que utilizava uma família tipográfica e em layout com elementos e formatos padronizados. O ano era 1907, em pleno curso da chamada Segunda Revolução Industrial (1870-1914), e Behrens foi contratado para dar cara à marca da indústria alemã de turbinas e energia AEG. Na visão dele, a tipografia, depois da arquitetura, era a área do design que “fornecia o retrato mais característico de um período e o testemunho mais forte do progresso espiritual e do desenvolvimento de um povo”, como bem reforça a tese de mestrado A tipografia customizada como elemento identitário em sistemas de identidades visuais, defendida por Luciano Cardinali em 2015 na FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo).

Ao estendermos o ponto de vista de Behrens para eras distintas da evolução humana, passando por tipos tão característicos quanto o alfabeto grego de 800 a.C. ou os caracteres góticos da Era Medieval, entre tantas outras variações, percebemos a validade da afirmativa do artista alemão. E, ao aportarmos em nossos dias, nos quais a comunicação se mescla de modo determinante entre o físico e o virtual, o progresso citado pelo pintor e arquiteto extrapola, como nunca antes, a seara das relações entre os indivíduos para fazer da tipografia uma ferramenta fundamental para o giro da roda da economia.

Temos, assim, avançado velozmente por meio de uma cultura de marcas identitárias. É nesse cenário que se enquadram muitos dos trabalhos de tipógrafos ou designers de tipos atualmente. O “A a Z” desses profissionais consiste em valer-se dos alfabetos para construir identidades de empresas, produtos e campanhas publicitárias.

Diego Maldonado é um dos que vêm trilhando esse caminho. Formado em Design pela FAU+D Mackenzie (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e Design da Universidade Presbiteriana Mackenzie), começou a atuar com tipografia no campo das revistas. Nesse nicho, conquistou sua primeira premiação, em 2015, com um projeto de design digital para a versão da publicação da GOL linhas áreas para tablets, pela Trip Editora.

Na imagem de capa, a tipografia Tupã Nova, de Diego Maldonado. Acima, Diego Maldonado e o lettering Mirror Mirror – @d.maldo.nado

Ele conta que sua imersão no universo tipográfico foi crescendo à medida que participava de eventos e conhecia pessoas do meio. Nessas interações, passou a trabalhar com o tipógrafo Tony de Marco, com o qual desenvolveu fontes próprias. Também criou quatro delas em parceria com a empresa Latinotype, do Chile. O trabalho autoral de criação de fontes é hoje uma das vertentes de atuação dos tipógrafos. Porém, segundo Maldonado, a escolha por essa opção deve ser ponderada pela incerteza em termos de formação de renda, uma vez que determinada fonte só passa a ser lucrativa para seu autor se ela efetivamente conquista usuários dispostos a pagar por sua licença de utilização.

De qualquer modo, é um foco profissional que se constitui em estratégia de visibilidade para tipógrafos iniciantes, que muitas vezes disponibilizam suas fontes gratuitamente em plataformas da internet com o intuito de mostrar para o mercado sua produção.

ABECEDÁRIO DA IDENTIDADE

Um filão muitas vezes mais certeiro para a carreira em tipografia é o da realização de projetos sob demanda. É bastante comum que empresas e organizações em geral incorporem ao seu pacote de componentes identitários uma fonte própria e exclusiva.

Realizar um projeto desses em geral é bem mais complexo do que pode parecer à primeira vista. E não só porque, como frisa Maldonado, a tipografia seja “o elemento número um da identidade”, mas também pela amplitude de etapas e detalhes envolvidos. “Vai muito além de desenhar maiúsculas e minúsculas de A a Z e demanda muito tempo de trabalho”, diz.

É preciso, por exemplo, pensar particularidades para os diversos “pesos” dos caracteres – entre o light e o bold. “O desenho da letra é só o começo”, avalia. “Em um sistema tipográfico, todas as letras, números, acentos e pontuação têm de combinar entre si de todas as maneiras possíveis. O espaço ocupado pela letra também tem de ser pensado em relação aos vazios adjacentes, é um projeto de alta complexidade”, conta Maldonado, que atualmente é contratado como especialista em design gráfico pela International School of London Qatar.

Pôsteres com a tipografia Galadali, de Diego Maldonado, para a Foundry Latinotype – @d.maldo.nado

Dessa maneira, criar uma família tipográfica extensa para uma marca é uma missão que pode levar de alguns meses a um ano – ou até mais. Abrange também a interação dos tipos com outros elementos que caracterizam visualmente a identidade da organização ou do produto, a começar pelo próprio logotipo. E precisa transmitir a essência e os valores da marca.

Afinal, a tipografia vai levar essa identidade “para todas as partes, integrando a comunicação onde quer que ela esteja”, frisa o type designer Daniel Sabino, fundador da type foundry (empresa que desenha tipos) Blackletra. “As letras estão em todo lugar: na publicidade, na web, nos celulares ou na sinalização das cidades”, diz. Sabino ressalta que “marcas que conseguem aproveitar a tipografia para torná-la única, icônica e proprietária elevam o nível de seus sistemas de identidade visual e colhem os benefícios desse poderoso ativo”. “Por meio da execução de um projeto de tipografia, é possível criá-la de acordo com os atributos da marca e as necessidades gráficas da comunicação, evitando as limitações típicas de fontes de varejo”, afirma. “Quando bem executada, a tipografia costuma ser utilizada por muitos anos, quando não décadas, o que dilui o valor do seu investimento inicial, aumentando seu retorno.”

Fundada em 2012, a Blackletra já desenvolveu uma biblioteca de fontes próprias e, no âmbito da tipografia corporativa, tem realizado projetos como o da fonte para o Memorial de Brumadinho, pavilhão erguido próximo à mina Córrego do Feijão em homenagem às vítimas do rompimento da barragem ocorrido em 2019.

Apesar da existência, no Brasil, de “projetos muito bem executados” de tipografia e de importantes avanços nos últimos anos, tanto em técnicas empregadas quanto em marcas dispostas a adotá-las, além de premiações voltadas para o segmento, Sabino ressalva que o mercado de trabalho para o profissional da área ainda é limitado: “Passou de minúsculo a muito pequeno”, compara.

Filipe Grimaldi se especializou na estética da tipologia popular brasileira – @filipegrimaldi

No quesito tecnologia, considerando as últimas sete décadas, a evolução partiu do suporte em metal para a película e depois o digital. No contexto da digitalização, um marco foi o surgimento, em 2016, do formato de fontes variáveis, que permite adaptações personalizadas a fontes de bibliotecas de mercado.

HUMANISMO E BRASILIDADE

Ainda que as frentes de atuação não sejam tão amplas, um olhar bem dirigido para novas possibilidades é uma forma de abrir caminhos de exploração na área da tipografia. Um bom exemplo de desbravamento de oportunidades está na trajetória do letrista e artista visual Filipe Grimaldi, que adotou em seu trabalho a estética da tipologia popular brasileira.

“Eu cheguei à letra popular por gostar de fazer fontes manualmente, por meio de caligrafia e outras técnicas”, contextualiza Grimaldi. “Comecei a olhar para as letras comerciais de faixas e placas, feitas por prestadores de serviços, e cheguei à pintura de letras brasileiras. Essas pessoas no Brasil, por meio de sua habilidade, desenvolveram um inventário popular de símbolos e letras que comunicam o nosso país.”

O artista então se especializou nesses tipos e passou ainda a pesquisá-los em toda a América Latina. “As maneiras como o povo e o comércio informal se comunicam ao longo do continente são bem parecidas”, afirma. “Além de ser uma estética que me agrada, o trabalho nessa linha resgata a profissão de letrista e aspectos importantes do design brasileiro que não estão no computador e sim no dia a dia das pessoas, no boteco e na padaria que frequentamos.”

As próprias empresas brasileiras, em sua visão, se aproximaram desse universo nos últimos dois ou três anos. “A cultura nacional se tornou mais interessante para elas, por ser uma maneira de se comunicar mais próxima do povo”, diz. “Para um banco, um supermercado ou um laboratório, é importante ter traços brasileiros em sua identidade e sua comunicação. O humanismo de alguém fazendo essa roupagem veio ao encontro do meu trabalho de valorização dessa arte mais manual e periférica.”

À MODA ANTIGA

Trabalhos mais artesanais e “à moda antiga” de fato não morreram com a digitalização. Ao contrário: ganharam um verniz de exclusividade, abrindo um flanco atrativo de atuação profissional. É por essa via que enveredou Érico Padrão, sócio do Estúdio Carimbo Letterpress. “Em 15 anos de trajetória conduzindo uma gráfica que tem como principal processo de impressão a tipografia/letterpress, fizemos centenas de convites e cartões de visitas, lambe-lambes e diversos outros projetos especiais”, conta Padrão.

Ele lembra que, quando começou, em 2009, havia ainda pouquíssimas das antigas tipografias, das que usavam tipos e clichês de metal, processo que já estava praticamente morto. “Aplicamos a técnica em projetos mais elaborados, de tiragens menores. É um trabalho de nicho, bem mais manual, e não é todo tipo de cliente que está disposto a arcar com o seu custo ou esperar pelo resultado, e na verdade muita gente nem o conhece”, diz. O método empregado pelo Estúdio Carimbo envolve o preparo do maquinário para cada cor a ser utilizada no trabalho. “Entre as impressões das diferentes cores, é feita a lavagem de toda a máquina e o registro da nova cor para uma impressão perfeita”, descreve Padrão. “O acabamento é feito com o refile na guilhotina ou corte com faca especial, realizado também na máquina tipográfica, e a pintura de borda”, especifica. “Depois, conferimos cada impresso e descartamos aqueles em que constatamos algum tipo de imperfeição.”

Érico Padrão usa elementos do passado para trabalhar o conceito de exclusividade – @epadrao

Entre os projetos mais recentes encampados pela empresa, o designer destaca duas produções para a Ubu Editora. Em uma delas, um lambe-lambe que acompanha o livro A Vergonha É um Sentimento Revolucionário, de Frédéric Gros, o desafio foi “acomodar a frase de palavras enormes com os tipos físicos, sem as possibilidades que temos no digital”, aponta. “A solução foi a mistura de fontes da mesma família, mas de pesos diferentes, e de caixas altas e baixas, conseguindo blocar o texto.”

Outra realização para a Ubu foi um envelope, com arte de Eduardo Berliner, para a edição de O Homem da Areia, de E.T.A. Hoffmann. Aqui, o projeto exigiu a impressão do envelope com o encarte dentro, de forma que a arte ficasse parte em uma peça, parte na outra, conferindo um relevo uniforme. Outro xodó de Padrão é a reimpressão de um projeto do ilustrador Guto Lacaz, criado por ocasião de sua exposição Allegro, realizada na Chácara Lane/Gabinete do Desenho, em São Paulo, entre 2019 e 2020. “Nesse trabalho, a tipografia é quase um detalhe, assinando os créditos do artista e da exposição”, explica o designer. “A estrela é o corte especial do personagem que dá nome à peça, o fantasma que atravessa a parede. São dois papéis de alta gramatura com um encaixe perfeito e que se sustentam, param de pé.”

O Estúdio Carimbo aplica técnicas mais tradicionais em tiragens menores.

A descrição de Padrão para a peça produzida para Lacaz nos dá a deixa para refilarmos algumas metáforas acerca do papel da tipografia. Em termos de construções simbólicas, ela é mesmo capaz de produzir efeitos quase mágicos, como se víssemos fantasmas atravessando paredes. Mas os impactos que exerce param de pé, são sustentáveis, evidentes. Por isso seu uso atravessa os séculos, valendo-se das técnicas de cada época para ajudar a contar, literalmente, a história que se escreve ao redor das palavras.

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